Segundos e centímetros. Capitães e subalternos.

OPINIÃO27.10.202003:00

1 - Volto ao ciclismo e ao Giro de Itália, que chegou à derradeira etapa de 16 km em modo de  contra-relógio, com dois ciclistas empatados em segundos nos dois primeiros lugares, depois de mais de 85 horas por terras transalpinas. Uma prova para sempre recordar neste ciclismo renovado depois das trevas da batota. Épicas foram as etapas de alta montanha nesta terceira semana do Giro, a primeira na subida ao alpino Stelvio, a 2757 metros de altitude, no Tirol do Sul, com as suas curvas e contracurvas que só de as vermos na televisão metem medo (a transmissão deu-nos várias vezes planos assombrosos da escalada). Nesta etapa, João Almeida perdeu a maglia rosa, mas deixou bem vincada a sua capacidade, apesar de não ter tido uma equipa forte para o ajudar numa etapa tão crucial. Depois, foi a penúltima etapa com três passagens pelo Sestriere a 2035 metros, onde de novo o ciclista português foi grande. Uma nova luz resplandece no ciclismo profissional com este desempenho de João Almeida ao ficar num excelente 4º lugar a pouco mais de 2 minutos do vencedor. E magnífico foi, também, o primeiro lugar no Prémio da Montanha, nunca obtido numa grande Volta por um corredor luso, Ruben Guerreiro.

2 - O futebol viveu uma tonitruante semana, coincidindo com o início da fase de grupos das competições europeias. Pode dizer-se, aliás, que em qualquer semana há sempre passatempos mais ou menos trovejantes, umas vezes com mais relâmpagos, outras vezes com nenhuma relevância, mas que, todavia, são tratados em modo delirante ou alvoraçado.

Sempre que mete grandes à bulha verbal, há um traço comum em muitas das suas interpretações. De um lado, a ironia inteligente, o sarcasmo cirúrgico, ainda que maliciosos, de outro lado, a descompensação, o excesso e a inoportunidade. Analistas encartados escolhem com toda a precaução os termos em que dissecam contendas verbais. Para um lado, todo o cuidado é pouco e todas as circunstâncias são ou atenuantes ou consuetudinariamente aceitáveis. Para outro lado, a análise é livre  e auto empolgante, sem qualquer tipo de à condição. Cautelosamente, secundarizam-se tempos negros ou deixa-se subentender que as questões formais (ou processuais) anulam a verdade factual e substantiva. Por isso, reavivar a memória é sempre um oportuno alerta contra a incoerência, um aviso contra o falso moralismo, uma atitude higiénica contra a poluição de que se alimenta o teatro do futebol português.

3 - Findos os jogos europeus, eis que a vexata quaestio, isto é o assunto mais polémico e controverso, foi a escolha de Otamendi para ser um dos capitães do plantel encarnado. Muitas horas e muita tinta para perorar sobre tal pecadilho de Jorge Jesus. E, pelos vistos, não chegaram as cristalinas e pacientes explicações dadas pelo técnico benfiquista. Explicações que, porém, jamais foram exigidas a outros técnicos e noutros clubes. Mas, claro está, no Benfica tudo é pasto para encher páginas e ensalsichar programas. Ouvi de tudo. Que tendo Jorge Jesus dito que, nos 5 escolhidos, deveria estar um jogador contratado esta época, então por que razão não foi escolhido outro, sem, porém, se dizer qual. Que não deveria ter sido assim decidido para não molestar a alma portista (confesso que aqui até me ri fartamente). Insinuou-se até que os sócios e adeptos do SLB estariam desconfortáveis com o argentino no 5º lugar para capitanear o grupo. Mal será quando numa qualquer organização haja apenas o critério burocrático e conformista da antiguidade e, consequentemente, a omissão do papel de quem decide e, em particular, do treinador. Ser capitão ou sub-capitão exige muito mais, dentro do balneário, ou fora dele, na sua relação com os colegas ou com os dirigentes, na sua representação externa e isso não se faz, por inércia, só com os tais acomodatícios critérios. Exige sentido de liderança, exemplaridade, profissionalismo, sentido de responsabilidade e carisma. E garantindo que quem exerça estas funções o faça adequadamente na nossa língua, não importa se é português ou estrangeiro. Jardel é brasileiro e Samaris deu-nos a alegria de se exprimir na língua de Camões melhor do que muita gente nata e criada em Portugal. E se ficámos agradados - e bem - com a escolha de Bruno Fernandes para capitão do Man. United na conservadora Inglaterra, por que motivo se gasta tanto paleio sobre o caso Otamendi?

4 - No jogo Nacional-Paços de Ferreira bateu-se o recorde mínimo necessário para anular um golo por fora-de-jogo: um mísero centímetro num campo com cerca de 10 mil centímetros, ou seja, uma percentagem desviante de 0,01%. Eis um modo de criar uma real injustiça, até porque estamos a falar de uma tal precisão que não está ao alcance de qualquer ser humano, no campo ou na televisão. Assim se estão entregando pontos decisivos de uma partida de futebol às máquinas. Acontece que estas ditas máquinas também erram, desde logo porque não são capazes de dispensar a acção do homem. Já tudo se esmiuçou, disse e escreveu sobre os limites a considerar pelo VAR e a serem sancionados pelo árbitro. Cada vez mais há anulações de golos por off-side de 1, 2, 3 ou 4 cm. Não é preciso ser técnico ou  adivinho para percebermos que a distância entre um frame e o seguinte pode anular esses escassos centímetros. Temos todos presente o sempre invocado direito consuetudinário de que, em caso de dúvida, se deve favorecer quem ataca. Por isso, é desejável que os limites para o fora-de-jogo sejam apenas contados a partir dos centímetros que, a uma velocidade média do passe, representem um só frame. Com tanta tecnologia à disposição, não deverá ser difícil obter um consenso dos tais centímetros de terra de ninguém. A partir dela, então compreende-se que tanto basta um centímetro, como dez, vinte ou trinta, para assinalar a infracção.

Também seria bom que o Conselho de Arbitragem, sempre mudo e mouco, dissesse qualquer coisinha sobre a aparente desconformidade que, em alguns casos, parece existir entre as linhas pintadas no campo (por exemplo as da grande-área) e as linhas colocadas pelo sistema ao dispor do VAR. Vistos na televisão, há casos em que as linhas são tudo menos paralelas e contrariam o que se vê a olho nu. Se pode ser ilusão de óptica, pois então que se venha demonstrar isso. Todos ganharíamos e as análises injustas se esvaneceriam.

Ainda a propósito da arbitragem, vem-se tornando cada vez mais necessário que os diálogos entre árbitros de campo e VAR sejam conhecidos, não direi já como no râguebi, em directo e para toda a gente, mas, ao menos, para os clubes intervenientes, como anexo aos relatórios dos jogos. Trata-se de uma prática que seria muito dissuasora para eventuais tentações que, por vezes, parecem existir. Seria bom para a verdade desportiva e, creio, seria excelente para o difícil trabalho das equipas de arbitragem. Por exemplo, como teria sido elucidativo ouvir-se a conversa entre o árbitro e o VAR no golo do FCP ao Marítimo e no penálti assinalado (e falhado) a favor dos portistas no mesmo jogo. Ou as conversas em Alvalade no clássico de há uma semana…