Resoluções para o novo ano: ordem, desordem e vice-versa
Um, dois: ordem, desordem
- Gosto de ordem.
- Parece-me muito bem. Ordem e ordem e ordem.
- Não exageremos, excelência.
- Não exageremos?
- Ordem basta, uma vez. Ordem.
- Vossa excelência sabe que a única altura em que os comboios chegavam a tempo em Itália foi no tempo de Mussolini?
- É verdade?
- Parece que sim. Vários o disseram.
- Democracia e Itália: comboios atrasados. Ditadura: pontualidade.
- As coisas não são tão simples, excelência.
- Mas sim, excelência, desconfiemos da ordem absoluta. Só com muita força é possível ordem absoluta.
- Pois.
- Mas eu tenho uma metodologia.
- Sim?
- Sou desordenado, mas tenho uma metodologia.
- Diga, excelência.
- Sempre que desarrumo tenho um plano prévio, um mapa.
- Um mapa para desarrumar? Curioso.
- É assim. Gosto de inovar.
- Parece-me bem.
- Tenho um mapa e um programa. Um programa da desorganização.
- Um programa?
- No fundo, sou muito organizado. Não gosto de improvisar nem quando desorganizo as coisas.
- Explique lá isso melhor, excelência.
- Explico, numa frase.
- Isso.
- Gosto de piorar a situação, mas não de qualquer maneira; destruo, mas com uma certa racionalidade, por etapas.
- Por etapas.
- Sou como certos políticos, certos dirigentes, certos treinadores. Destruo por etapas. Não é só de uma vez.
- Vossa excelência destrói, mas com boas maneiras, digamos.
- Claro. É preciso manter sempre a gravata apertada. Foi o único conselho que o meu avô me deixou.
- Sim?
- Faças o que fizeres, mantém sempre o nó da gravata bem feito e os sapatos impecáveis. Palavras do meu avô.
- Com fato e gravata impecáveis, e um sorriso, vossa excelência pode destruir o que quiser que ninguém vai notar, é isso?
- Exactamente
- Entendo. É uma teoria.
- Mas deixe-me explicar em pormenor a minha metodologia que trago de velho ano para o novo ano.
- Explique.
- Sempre que coloco algo fora do sítio, registo o sítio onde coloquei essa coisa fora do sítio. Assim essa coisa que foi colocada fora do sítio fica de novo no sítio. Um segundo sítio.
- Entendo. Mas por que não deixar as coisas como estão, no seu primeiro sítio, organizadas?
- E o que faria durante o dia?
- Entendo. Esse é um argumento. Desarruma as coisas porque está aborrecido.
- Acima de tudo, gosto da ordem. Mas também gosto de fazer algo. Não sou preguiçoso. E o novo ano estimula-me.
- Parece-me muito bem.
- E por isso, quando estou muito tempo pasmado diante de uma certa ordem das coisas, começo a ficar irritado, com vontade de começar a trabalhar.
- E?
- E começo então a mudar o sítio das coisas que estão em ordem e a construir uma desordem meticulosa. Uma desordem pormenorizada.
- Uma desordem que dá conta dos detalhes, dos pormenores.
- Exactamente.
- Não se trata, portanto, propriamente de desarrumar, nem de destruir.
- Nada disso! Sou por completo contra as destruições. Trata-se de começar o ano como deve ser: mudando as coisas ligeiramente de sítio. Tudo na mesma, mas um centímetro ao lado.
- Isso mesmo.
- Um centímetro decisivo.
Ser ‘pão duro’, mole, ou simples alimento
2Nesta época especial, de dádiva e gratidão, e, acima de tudo, de recomeço, lembrar uma expressão bem popular: ser pão duro, definido imediatamente como «ser avarento, sovina».
O pão duro, bem duro, fica pedra. Fica, não em estado sólido, mas em estado, digamos, mais-do-que-sólido, estado não comestível; estado parte-dentes.
Há estado sólido comestível e estado sólido não comestível.
Pão duro é isso: é pedra. Não comestível. E daí a sua sovinice.
É alimento e ali está diante de todos, mas não se pode comer. O pão duro, o pão-pedra, o pão-quebra-dentes.
Pão duro: é alimento, mas não é alimento; parece dar, mas não dá.
O oposto disso: é um pão mole: alguém que se dá excessivamente, dá sem os outros pedirem.
Ser pão-duro, ser pão mole, ou ser simplesmente alimento. Três opções para o novo ano.