Repudiar o repúdio
Estranha-se o comportamento de quem tanto quer seguir de férias para o Algarve como de quem se aglomera em fim de semana soalheiro nos passeios à beira mar na Póvoa ou em Vila do Conde, mas estranha-se também que, na família do futebol, haja clubes alheios à tragédia que o país e o mundo vivem e coloquem os seus interesses acima de tudo e de todos.
Não vejo outra forma como interpretar a reação do Real, um clube do concelho de Sintra que participa no Campeonato de Portugal, o qual, em comunicado, não só estranha como repudia, o termo é este, «o que poderá ser a solução da FPF para terminar o Campeonato de Portugal desta época, em face da crise sanitária que se vive», reclamando o investimento que fez e por aí diante. «Repudiamos qualquer intenção de terminar o campeonato de Portugal deixando tudo como está!» porque, destaca, «as crises são normalmente vistas como janelas de oportunidade para se melhorar».
Esta atitude acre não deixa de ser reveladora do desinteresse pelo sofrimento de milhares de pessoas e pelos imensos e complexos problemas que as entidades que gerem o futebol, em toda a Europa, estão a enfrentar no sentido de encontrarem saídas razoáveis que, por ora, não se descortinam. Basta escutar as notícias e estar atento ao que dizem os governantes e as autoridades de saúde.
Elas querem, mas não podem, ou, pelo menos, ainda não podem, e isso o Real não deveria ignorar, nem entrar pela via da insinuação ou inverter a fotografia do caos para se colocar no papel de vítima, como se esta brutal crise fosse ideia de alguma mente distorcida com o propósito de prejudicar um clube que «investiu para poder ascender ao segundo nível do futebol nacional» e, como foi «administrativamente prejudicado» no final da época passada, «não aceita ser prejudicado de novo».
O Real deve lutar pela sua razão e é-lhe reconhecida liberdade e legitimidade para, como alude, recusar prejuízos para os quais nada contribuiu. Vivemos em estado de emergência e, muito provavelmente, será prolongado para combater esta calamidade, sem fronteiras nem prazo. Em Espanha e em Itália as mortes não abrandam, tal como em França. Na Holanda, estão à beira das 800 e na Alemanha e na Bélgica das cinco centenas. No Reino Unido, a última informação aponta para um prazo entre três e seis meses para se controlar a propagação do vírus, embora sem garantias, e por cá a diretora geral de Saúde foi clara ao afirmar que não se trata de uma questão que se resolve 15 dias, nem em dois ou três meses.
A FPF tomou a decisão acertada de dar como terminadas as provas nacionais de todos os escalões de formação de futebol e futsal, com a preocupação de proteger a população «especialmente jovens e crianças que amam o futebol, salvaguardando-os e a todos os seus familiares de perigos bem presentes». Com idêntica sensatez tomará uma medida sobre o Campeonato de Portugal, seja ela qual for e agrade ou não ao clube de Massamá, o qual ainda não se deve ter dado conta que a Federação Portuguesa de Futebol é hoje uma fonte de saber, de competência e inovação, uma instituição de referência internacional, admirada e respeitada por congéneres em todo o universo FIFA.
Foi de mau gosto este comunicado, que espelha o lado detestável do futebol, em absoluto contraste, por exemplo, com intervenções públicas de dirigentes de superior envergadura, das quais destaco apenas as mais recentes. Uma, de António Salvador, presidente do SC Braga que, em videoconferência com os jogadores, transmitiu-lhes um sinal de serenidade e confiança. «Foquem-se na preparação e estejam tranquilos quanto a tudo o resto», afirmou.
Outra, de António Silva Campos, presidente do Rio Ave, notável, pela mensagem de paz, de confiança e espírito solidário que ontem transmitiu:
«O bem comum é sempre mais importante. Todos os dias questionam como será o desfecho da Liga. Todos saberão que os clubes, Liga, FPF, UEFA, FIFA, FIFPro e ECA procuram constantemente soluções e respostas para essas questões. Mas tudo está dependente da evolução da pandemia. Todos queremos as melhores resoluções para as inúmeras interrogações que se levantam à volta do fenómeno futebol. Não sabemos ainda quando tudo irá ficar normalizado, nem como será esse ‘normal’. O que sei é que acredito sempre que tudo vai melhorar e o que nos une hoje, foi o que nos trouxe até ao presente. Esta paixão comum… e será essa força que nos irá fazer vencer amanhã.»
Noutra passagem: «Tenham sempre espírito de solidariedade para com os que mais precisam nesta altura. Sigam todas as indicações das autoridades sanitárias e de segurança», porque, acrescento, o futebol vem depois, quando puder ser.
Se o Real vir os seus interesses atendidos, que seja capaz de disponibilizar um segundo para respeitar a memória de Vítor Godinho, futsalista aveirense de 14 anos, falecido, e de entender que o valor da vida é demasiado importante para se comparar a uma subida de divisão. Acredito, sei, que a FPF vai fazer o que tiver de ser feito e, por isso, é o repúdio do clube da linha de Sintra que deve ser repudiado.