Quando muitas vezes se fala antes de pensar

OPINIÃO27.06.201904:01

Um embaixador com quem me cruzei contou-me que um homólogo seu lhe tinha confiado o segredo da diplomacia: o diplomata é aquele que pensa duas vezes e depois… fica calado. Não pretendo ser diplomata, por isso, depois de pensar duas vezes, sinto ter de dizer qualquer coisa sobre Sousa Cintra e algumas das declarações que ele fez a este jornal, domingo passado.

A primeira coisa é que Sousa Cintra interveio duas vezes em momentos dramáticos do Sporting. A primeira, foi há 30 anos (a 23 de junho de 1989, pretexto da entrevista), quando Jorge Gonçalves era presidente do Clube e o conduzia à ruína. Cintra teve, então, a coragem de se colocar à frente de um barco que metia água por todos os lados. A segunda foi há um ano, como presidente transitório da SAD e membro da Comissão de Gestão de que Artur Torres Pereira foi presidente. Também na altura - e sem esquecer os outros, de que adiante falarei - Cintra mostrou coragem e empenho, além de um otimismo inexcedível.

Aquiles, herói maior da Ilíada, o grande épico da Grécia clássica, tinha a sua vulnerabilidade no calcanhar (única parte do seu corpo que não fora mergulhada no rio Estige, cuja água o deixou invulnerável). Daí a expressão calcanhar de Aquiles. Já Cintra tem a sua vulnerabilidade na falta de diplomacia, ou seja, se preferirem, em não conseguir ficar calado.

Na canção Bom Conselho, Chico Buarque diz ironicamente «Aja duas vezes antes de pensar», exatamente o contrário do que diz o provérbio. Sinceramente, Sousa Cintra tem, do meu ponto de vista, um voluntarismo desta ordem.

Figo e Bruno Fernandes

No entanto, há imensos créditos que temos de dar ao empresário algarvio e figura estimada do Sporting. (Quando o acompanhei, juntamente com outros elementos dos corpos sociais transitórios, a um jogo em Moreira de Cónegos tive oportunidade de ver dezenas de pessoas a quererem selfies com ele). Desde logo, porque se há 30 anos conseguiu que Figo não fugisse para o Benfica, quando o clube estava de rastos, há um ano conseguiu que Bruno Fernandes, principalmente, mas também Bas Dost e outros jogadores fundamentais, voltassem para o Sporting ou não abandonassem o clube.

Claro que ao falar de Sousa Cintra não podemos esquecer aqueles que o rodearam. Na altura que acompanhei o seu trabalho, há um ano, Artur Torres Pereira e Luís Marques, entre outros, tinham uma influência na Comissão de Gestão que ajudou e muito às decisões de Cintra. Assim como convém não esquecer Jaime Marta Soares, pois foi ele que conferiu a legitimidade a todos os que participaram na transição (além de ter sido um herói de resistência da AG de 23 de junho).

Porém, o carisma é de Cintra. E por isso eu entendo que ele afirme coisas como: «Com Peseiro tínhamos ganho o campeonato.» Eu não as diria, sobretudo num momento destes em que precisamos de união e em que sabemos que há muita gente, de fora e de dentro, dispostas a não entender as saudáveis divergências de opinião e a considerar tudo como traições, ataques ou cisões.

Se lermos a entrevista com cuidado percebe-se que Sousa Cintra está relativamente magoado com a Direção atual e é, essencialmente, nessa parte que devia ter sido mais diplomata: pensar duas vezes e ficar calado. Porque, meu caro José Sousa Cintra, como dissemos tantas vezes entre nós e o dizes na entrevista, todos fizemos o nosso trabalho pelo Sporting sem nada receber, prejudicando as nossas atividades, por amor ao clube. Nenhum de nós o fez em busca de agradecimentos ou honrarias. Terminada a tarefa, entregues as pastas aos eleitos com legitimidade de tomar em mãos os destinos do clube, todos nós temos de saber voltar à nossa condição anterior. Uns de ex-presidentes, ou ex-presidentes da AG, ou de ex-vice-presidentes. Outros, como eu… de nada. Com uma Gamebox comprada, tentando não faltar aos jogos em Alvalade e seguindo com interesse os assuntos do Sporting. Sou sportinguista, não sportingologista; dou tempo a que as Direções façam o que prometeram, vou tirando conclusões e julgo-os no final do mandato.

Compreender o passado

É por esta atitude que é necessário compreender o passado. A autêntica fronda que houve com Bruno de Carvalho, já o escrevi, disse e repetirei mil vezes, nada teve a ver com resultados desportivos. Nem sequer com questões financeiras, que também as havia, como aliás Sousa Cintra refere. A questão iniciou-se depois do assalto a Alcochete em maio, não por haver quaisquer indícios da participação do demitido presidente, mas pelo modo displicente e quase cúmplice como reagiu. Aconteceu, do meu ponto de vista (e de acordo com o processo de suspensão e, posteriormente de expulsão), porque depois de várias pessoas se demitirem e pedirem a sua demissão ele (e outros) enveredaram por um caminho de violação sistemática das regras e dos Estatutos, atuando como se o Sporting lhes pertencesse. Coisa que aliás se prova quando os seus apoiantes consideram a AG que o demitiu como «um golpe dado por 71%». Se não fosse trágico era uma anedota quase 4/5 dos eleitores fazerem um golpe para afastar um presidente.

Por isso - e eis outro ponto em que concordo com Sousa Cintra - o Sporting tem de estar em primeiro lugar. Eis porque é ridículo que alguém se julgue indispensável ao clube, insubstituível ou não veja, como Cintra viu e bem, que há um tempo para tudo. O ex-presidente, quando lhe perguntaram se avançava nas eleições do ano passado, respondeu firmemente que não. Porém, serviu o Sporting, tal como Marta Soares, Torres Pereira e tantos outros, num momento de aflição. Quem desta dedicação apenas pretende o penacho, ou quem confunde ser presidente de um clube como o Sporting com ser dono do clube estará sempre condenado.

A menos que… a menos que os sócios permitissem que a natureza do próprio clube se alterasse. O que, com Bruno de Carvalho, acabaria por acontecer.