Portugal e o glorioso sistema ‘bota da tropa’

OPINIÃO13.06.201900:52

JURO que não entendo uma espécie de má vontade, que por aí anda, em relação a Fernando Santos. Afirma-se que as suas equipas não jogam futebol bonito, que são timoratas, que têm tração atrás. Pode ser. Não consigo discutir acerca de futebol e menos ainda as melhores táticas para defrontar cada equipa, com alguém que deu provas em clubes e nas seleções da Grécia (bons resultados) e, sobretudo, de Portugal - Campeonato da Europa e, agora, Liga das Nações.
Não nego que, para meu gosto, o futebol de Fernando Santos é sensaborão. Também eu prefiro a fúria e vontade de vencer típica nos ingleses e moderada nos espanhóis, à frieza dos alemães ou ao antigo cadeado (catenaccio) dos italianos. Mas, confesso, isso são as minhas preferências, o que não quer dizer que um tipo de futebol seja melhor do que o outro. Como afirmou Fernando Santos,  para se vencer uma grande competição é preciso saber jogar bom futebol. E, depois, fez esta distinção interessante: «Jogar bem não é o mesmo do que jogar bonito». Pois não, como também disse o selecionador, o belo é uma categoria subjetiva… embora haja no belo algo atraente para aquele enorme número de pessoas que consideraram determinadas obras de arte belíssimas. Como uma pintura de Da Vinci ou de Van Gogh, uma ópera ou uma missa de Mozart ou Gounod, uma Sinfonia de Beethoven ou Mahler, um livro de Dostoiévsky ou Yourcenar… ou aquele golo em pontapé de bicicleta que Ronaldo marcou na época passada à Juventus - e que os próprios adeptos da Vecchia Signora não se coibiram de aplaudir, para depois contratar o artista.
O bom (não confundir com o bem, porque jogar bem, nesse caso, seria ainda uma categoria diferente; um bom jogo e, também, um jogo belo), o bom, repito, é ganhar. E com mais ou menos beleza e mais ou menos destreza foi isso que Fernando Santos fez. E por isso lhe devemos estar agradecidos.

Um estilo, uma tática ou um sistema?

SE esta fosse a primeira vitória, a final four da Liga das Nações, podíamos levá-la à conta de sorte. O problema é que, já há três anos, no Campeonato da Europa, Portugal foi eficaz, foi bom, sem jogar bem e muito menos bonito.
Ora é aqui que, penso eu, entra a personalidade de Fernando Santos. Ele pretende ganhar, dentro das regras, sem golpes baixos nem truques psicológicos, mas colocando as peças que pode (e, calculo, algumas que se vê obrigado) de forma a não perder. Como é óbvio, quem não perde em jogos como estes, que não podem terminar empatados, ganha. Ou seja, se não perdemos, temos de ganhar. Já em competições (como na fase de grupos do apuramento para o Euro-2020, temos um empate a zero com a Ucrânia e um empate a um com a Sérvia, ambos em casa, e vamos atrás do prejuízo, embora as outras seleções, Luxemburgo e Lituânia, não sejam ameaça).
Confesso, no entanto, que tenho absoluta confiança no apuramento. Porque à frente da equipa está um homem sereno e calmo, que os jogadores, em especial Ronaldo, respeitam e que há de desencantar uma forma de eficazmente nos fazer lá chegar. Já foi várias vezes afirmado que Portugal desde o ano 2000 esteve em todas as fases finais de todas as competições de seleções. Já é uma tradição que não creio que se quebre.
Mas voltemos às razões deste mal-estar com Fernando Santos, tão visível em muitos bons comentadores. A que se deve?
Essencialmente, penso que é por Fernando Santos ter noção exata das nossas limitações. É certo que já nos podemos considerar uma potência futebolística, mas a verdade é que somos um país pequeno, com pouco peso, que apenas tem uma equipa que, embora com muitos bons jogadores, só tem um absolutamente incontestável em qualquer seleção do planeta e arredores. De resto temos mais uns três ou quatro com grande possibilidade de estarem entre os melhores na sua posição; e isto não significa desprestigiar a Seleção, apenas ter noção das realidades. A humildade de Fernando Santos passa por dois aspetos: respeitar ao máximo qualquer adversário (e mesmo assim nem sempre consegue que a equipa o faça); e experimentar todos os jogadores (não sei se pressionado ou não, mas a verdade é que o faz).
Nada disto me parece um sistema ou sequer uma tática. É um estilo de jogo. Pode fazer um losango no meio campo e colocar João Félix, assim como Bruno Fernandes, em lugares a que não estão habituados, dando um ar de quem não podia fazer nada sem Ronaldo, de tão medíocre a equipa jogou. Porém, na final, fosse por inspiração (que ele agradeceu) fosse pelo estilo que tem, enquanto meia defesa se fixava em Ronaldo, Gonçalo Guedes (que contra a Suíça entrara a substituir Félix) marcava o golo da vitória.

As vitórias morais... e as vitórias com taças

Tivemos, na nossa história, excelentes treinadores e selecionadores da equipa nacional. Tivemos excelentes jogadores e magníficos onzes. Basta lembrar o que fizemos em 1966 (terceiro lugar no Mundial de Inglaterra) com o ataque demolidor - Jaime Graça, Simões, Torres e Eusébio municiados por José Augusto e o capitão Mário Coluna. Caramba! Que equipa, treinada pelo brasileiro Otto Glória, que era verdadeiramente uma glória do futebol. Podemos discutir aquela meia-final contra a Inglaterra, se fomos ou não roubados; também jamais esqueceremos aquele jogo em que, estando a perder 3-0 com a Coreia do Norte aos 21 minutos, Eusébio marca quatro golos entre os 27 e os 59 minutos de jogo, deixando o quinto para Simões. Mas faltou-nos a Taça…
Há a Seleção de 1984 no Europeu de França (terceiro lugar). Treinados por Fernando Cabrita, tínhamos Chalana, o genial Chalana e na meia final onde tombámos no prolongamento, os dois golos de Jordão, um deles, já aos 98’, que nos poria na final; porém, a França deu a volta, marcando aos 114’ e aos 119’, este último pelo inesquecível Platini.
E o Euro de 2000, na Bélgica e Holanda (novamente terceiros), perdendo para a França com um golo de ouro (o prolongamento acabava quando uma equipa marcava), um penálti duvidoso (cometido quando a bola bate no braço de Abel Xavier) que Zidane não falhou. A nossa equipa, treinada por Humberto Coelho, que jogadores tinha! Figo, Rui Costa, Sérgio Conceição, Nuno Gomes…
E, finalmente, 2004 - segundo lugar… em Lisboa, depois de perdermos a final para a Grécia, com um golo seco e contra a corrente de Charisteas, aos 57 minutos. A bela equipa que Scolari organizou: lá estavam Figo, Pauleta, Deco e um muito jovem Cristiano Ronaldo…
Sim, sempre tivemos bons jogadores; excecionais jogadores. O que não tínhamos, até 2016, com Fernando Santos, era mais do que vitórias morais. Nessa data ganhámos não só moralmente, como levámos a Taça. E domingo passado também. O que nos lamentámos da falta de frieza, do excesso de confiança, da impetuosidade, da nossa pequenez no âmbito da UEFA e da FIFA… desvaneceu-se. Foi só graças a Fernando Santos? Claro que não. A FPF há de ter mérito nestas campanhas e mais ainda os jogadores. Mas podemos seriamente exigir um futebol sempre ao nível, pelo menos, do que jogámos na final contra a Holanda? Claro que não. Ninguém o tem!
A bota cardada, a bota da tropa, fez-se para andar por terrenos maus. Ganhar, apesar de todas as contrariedades e sem gabarolices, eis o que faz do atual selecionador digno de todos os agradecimentos. Por mim, é interessante jogar com beleza e com um desenho tático imaculado. Mas o que fica na história são as vitórias.
Obrigado, Fernando Santos.