Pode o excesso de dinheiro matar o futebol?

OPINIÃO20.06.201904:00

Não sou daqueles que defende que todos devem ser iguais e menos ainda dos que acham que os bons não devem ser bem remunerados. Se o exemplo que trago hoje é o de um miúdo, João Félix, que tem sido fora de série a jogar, é por que ele se torna símbolo dos milhões e milhões movimentados pelo futebol.

Lembro-me que uma vez Rui Costa (espero não me enganar no nome nem na citação) disse qualquer coisa como isto: «Eu gosto é de jogar à bola, não gosto assim tanto de futebol.» Ora, também sou assim. Entendo como jogar à bola o jogo jogado, entre equipas competitivas e determinadas; já a palavra futebol, sobretudo nestas épocas de defeso, pode significar os grandes e pequenos negócios e as altas e baixas promessas.

Houve quem se tivesse rido da cláusula de rescisão de João Félix. 120 milhões é praticamente ¼ do Orçamento do Ministério da Cultura. Como o menino vai ganhar (segundo anunciava o Correio da Manhã), 800 euros por hora, ou cerca de seis ou sete milhões por ano - mais do que o orçamento dos ensinos básico e secundário - fica-se perplexo quando se sabe que, ainda assim, ficaria com um salário abaixo de Oblak, Koke e Diego Costa. Uma equipa que paga estes valores - e que nem andam sequer perto dos mais bem pagos, como Lionel Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, Gareth Bale ou Pogba - deixa-nos completamente esmagados.

13 mil anos

Digamos que Messi ganha num ano o que um trabalhador com o salário mínimo levaria 13 mil anos a ganhar. Mas mesmo um trabalhador com um salário já considerado elevado (5000 euros) levaria quase 1500 anos a tê-lo, ou ainda 750 anos no caso de um quadro já bem pago a 10 mil euros. Saltemos para António Mexia que em 2018 ganhou dois milhões de euros e por isso se tornou num foco de escândalo em Portugal. O CEO da EDP precisa de mais de 47 anos para ganhar o mesmo que Messi num ano.

Não se trata de inveja, nem de algo semelhante. Pelo contrário, penso que os artistas, qualquer que seja a arte, devem ganhar de acordo com o valor que a sociedade e os especialistas lhe atribuem. A minha questão é mais funda. Clubes como o Barcelona, o United e o City, o Real Madrid e o Atlético, o PSG e alguns outros que se aproximam, jogam noutra divisão. E já não só por terem os melhores jogadores, mas porque têm tanto dinheiro que se dão ao luxo de comprar os bons jogadores dos outros, sem sequer ter a certeza de que os irão pôr a jogar. Eu sei que existem normas de fair play, mas não me parece que elas sejam suficientemente estritas. Essencialmente visam o não endividamento dos clubes. Porém, quando estes passam a ser propriedade de fundos soberanos ou praticamente de países como o PSG, não têm de ficar endividados; basta-lhes ter os patrocínios certos. Vejamos o presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, de 45 anos, que por sua vez é CEO da Catar Investments Sports e, como é óbvio, próximo do Emir do Catar. O Manchester City tem como presidente Khaldoon Al-Mubarak que é ali do país vizinho de Khelaifi, os Emirados Árabes Unidos. Daí que o clube ostente o nome de Etihad no estádio e nas camisolas. Etihad é a companhia mais ou menos oficial dos Emirados, com sede em Abu Dabi, a capital. Mas a Emirates, que tem sede no Dubai (a maior cidade e capital económica do país) é a grande companhia do Emirados Árabes Unidos. Patrocina não só a Taça de Inglaterra, como o estádio do Arsenal e o próprio Arsenal e ainda o Real Madrid, o PSG, o Benfica, o  Milan, o Hamburgo, o New York Cosmos e o Olympiakos, de Atenas. Claro que o bolo não é dividido igualmente por todos. Mas clubes assim são mais ou menos importantes consoante os xeques (e os cheques) dos Emires quiserem.

A rivalizar com os arábicos xeques, andam os chineses. Não esquecer que o comprador de Félix, o Atlético madrileno, é de um conjunto de investidores de onde sobressai o dono de um conglomerado chinês, que detém a construtora Dalia Wanda Group. O nome Wanda é também o nome do novo e magnífico estádio. Dois dos seus sócios não têm claramente cabedal para o acompanhar: o presidente (formal) Enrique Cerezo é produtor de cinema e Miguel Angel Gil, filho de Jesus Gil y Gil, um executivo. Porém o quarto sócio é, também, curioso: o bilionário Idan Ofer, um israelita que vive em Londres e preside a várias empresas, entre elas uma de perfurações de petróleo, a Pacific Drilling. Parece que o petróleo e o futebol andam muito ligados.

E volta Nasser Al-Khelaifi

Este mesmo xeque (ou sheik, se preferirem à inglesa), é também figura central do Mundial do Catar. A organização deste evento levou à detenção e interrogatório do ex-líder da UEFA Michel Platini. Fala-se de milhões para trás e para a frente. Sem pretender entrar num processo que não tem acusados precisos, nem provas, nem julgamento (na imprensa francesa de referência, fala-se de Sarkozy como tendo empurrado Platini para a solução, o que dá uma ideia de onde isto poderá chegar), sem arriscar falar do que não conheço, noto que o advogado de Platini (William Bourdon) é o mesmo de Rui Pinto, o hacker detido em Portugal. Entretanto, Ana Gomes diz que o escândalo de Platini faz parte dos esquemas divulgados pelo Football Leaks de que Rui Pinto era uma das fontes fundamentais. Qual o papel de Bourdon nisto tudo? Defende quem acusa e quem é acusado? Não entendo.

Podia ainda falar de Jorge Mendes, o grande artífice dos negócios em Portugal. Os mais de mil milhões que já vendeu mostram que sabe o que faz e onde se movimenta, com mais ou menos moral, neste mundo controverso. Mas prefiro voltar ao essencial. Todo este dinheiro, todos estes casos, não acabarão por matar o futebol?

O que temos pela frente ainda é jogo equilibrado, como se pretende para um desporto? Ou quem ama verdadeiramente a emoção de um jogo terá de voltar-se para ver a luta heroica do Belenenses (verdadeiro) ou do Casa Pia?

Enquanto o mar se alarga a nível da Europa, com os grandes tubarões (espécie de I Divisão) a nunca darem hipóteses aos restantes clubes (este ano o Ajax intrometeu-se, mas vai ficar desfalcado), ao nível dos países alarga-se o fosso entre os que têm acesso à Liga dos Campeões e os que não têm. E, em divisões inferiores, entre os que ainda assim vão à Liga Europa (caso do meu Sporting) e os que não chegam lá.

Quem tem sempre a boca cheia da luta pela igualdade, olhe para o futebol. Não há maior desigualdade, sob todos os pontos de vista.