Perceção e realidade
Nós, na arbitragem, continuamos a (não) comunicar como (não) comunicamos há 40 anos
HÁ vários artigos sobre a dicotomia perceção vs. realidade e todos são extremamente interessantes, porque os dois conceitos são atuais e definem vincadamente a forma como pensamos e olhamos para o que nos rodeia.
Os entendidos definem realidade como aquilo que existe de verdade. É o que é, factualmente. Podemos conhecê-la ou desconhecê-la, mas ela é inequívoca. Já a perceção de realidade é a forma como cada pessoa a vê e sente, a forma como cada um a entende. Como cada um a interpreta.
Entre uma e outra há diferenças consideráveis, às vezes marcantes, por isso o mais importante é tentar que a realidade seja tão bem percecionada que ninguém duvide dela. Que ninguém a veja de forma distorcida ou pessoalizada.
Um exemplo histórico: em tempos, houve governantes que chegaram a proibir proeminentes cientistas de tentarem provar que a Terra era redonda, porque isso alteraria a sua perceção do mundo. Preferiam a sua visão de verdade à verdade científica.
Hoje em dia, toda a realidade é também perceção, que é como quem diz, tudo o que acontece de verdade será sempre assimilado em função da forma como a informação é partilhada para o exterior. Em função da forma como é descodificada pelos outros.
Aqueles que entendem isso, aqueles que têm a capacidade de perceber o contexto em que estão inseridos (cultural, religioso, educacional, legal, etc.), serão mais bem sucedidos a transmitir a sua realidade.
Já aqui o disse várias vezes e repetirei as que forem necessárias, porque esta é, de facto, a minha visão sincera: a classe da arbitragem, a minha classe de sempre, não mudou uma vírgula (face aos últimos anos) na forma como vende a sua defesa, como esclarece situações que levantam poeira, como mostra a sua realidade. A política do silêncio existe desde sempre e, sublinhe-se, não é coisa apenas nossa: é transversal em todo o mundo.
Se é verdade que a prudência manda ter mais ouvidos que boca (sobretudo numa área tão sensível), também não é mentira que os tempos mudaram substancialmente. Hoje tudo é avassaladoramente diferente. Política é perceção, futebol é perceção, tudo é perceção.
A informação que as pessoas dispõem atualmente obriga a uma abordagem estrategicamente diferente. A uma abordagem mais inteligente e adequada.
No caso da arbitragem, o segredo é de facto a comunicação. Comunicar bem desmistifica mitos, dilui suspeitas e abre portas à tolerância. Quem conhece, desconfia menos e aceita mais. Quem conhece, questiona menos e valoriza mais. É matemático.
Comunicar bem afunila a diferença entre a realidade e a sua perceção.
Como em tudo na vida, uma abordagem de maior proximidade não pressupõe algo ao estilo de bar aberto ou de intervenções públicas a pedido. Pressupõe método, consistência e sentido de oportunidade. Falar as coisas na forma, modo, local e momento certos.
A perceção atual da maioria das pessoas é que a generalidade dos árbitros é incompetente e que alguns deles podem até ser corruptos. Elas estão erradas, mas se quem de direito se silenciar perante essas (e tantas outras) acusações, continuarão a acreditar na sua verdade e a agir em função dela. A fatura pagam os árbitros, na forma como são enxovalhados desportivamente (e nas suas vidas privadas).
Se calhar, recrutar e manter jovens nesta atividade seria muito mais fácil se a ideia que eles (e os seus pais) tivessem da arbitragem fosse outra. Se calhar as coisas mudavam se as pessoas passassem a perceber melhor alguns mecanismos, algumas situações, alguns processos.
Vale a pena refletir sobre isto a sério. Toda a gente já percebeu que transmitir bem uma mensagem pode ser o segredo do sucesso. Nós, na arbitragem, continuamos a (não) comunicar como (não) comunicamos há 40 anos. O resultado percecionado está à vista.