Os ténis e os pés

OPINIÃO15.02.202003:00

OS ténis de corrida têm preenchido páginas de grandes jornais. Só nesta semana cruzei-me com a matéria no Guardian e no Washington Post, sempre partindo da dúvida: estão os novos modelos de uma marca desportiva, pelo avanço tecnológico, a permitir vantagens injustas? O paradigma parte de Kipchoge, o primeiro a correr a maratona abaixo das duas horas, usando o tal calçado. O NY Times também escreveu que os resultados cada vez melhores dos maratonistas estão relacionados com os benefícios dos ténis.


Tudo remete para outra questão, antropológica: o corpo humano evoluiu para correr ou só para andar? A ideia mais aceite é a primeira: para correr, mesmo bípede. Não para explosões de velocidade, é verdade, antes para longas distâncias que permitissem, como predador, aguentar mais do que as presas.


Em todo o caso, em contraponto às tais arrazoadas vantagens dos novos ténis, ouvi no podcast Stuff You Should Know, num episódio chamado Running Barefoot , bem como li no livro Born to run, de Christopher McDougall, que a modernidade nos tem interrompido  evolução de milhões de anos correndo calçados,  com comprovado aumento do número de lesões relacionadas.


É curioso, julgo, que, quando os ténis conseguem perfeições de solas almofadas, circulações de ar, apoios aos tornozelos ou adaptação à especificidade da pegada, a possibilidade de injustiça tecnológica se debata assim, pois, ao contrário do que acontece com outras tecnologias, note-se que estas do calçado são mais tecnológicas quanto mais naturais. Não vejo, aqui, nenhuma busca de sobre-humanidade. Aliás, que outros recordes quebrados no desporto não dependeram, em algum momento, na prova, no treino ou na recuperação, de evoluções da ciência?


Na corrida verifica-se até um  caso talvez único: os ténis são mais evoluídos quanto mais se parecem com os pés.