Os ricos vão matar o futebol
1. Metade apenas da lotação do Wanda Metropolitano, em Madrid, sede da final da Champions, foi reservada para adeptos dos dois clubes finalistas. A outra metade foi reservada pela UEFA para os seus convidados de luxo - representantes dos patrocinadores, membros das Federações nacionais e da própria UEFA e ilustres do futebol. Enquanto cá fora milhares de adeptos do Tottenham e do Liverpool, alguns tendo atravessado um Oceano para estar ali, desesperavam por um bilhete e se conformavam a ver o jogo nas Fan Zone, lá dentro uns milhares de privilegiados, muitos dos quais a quem o futebol nada diz, pavoneavam-se no seu estatuto VIP. Já vi esta gente de perto - por exemplo, na final da Liga Europa, que o FC Porto ganhou em Sevilha, tendo ficado no mesmo hotel que eles a seguir ao jogo - e o que vi foi esclarecedor: eles não são um pequeno, são um grande exército, que vivem como nababos e que gastam consigo e com as suas mordomias uma fatia determinante dos lucros das competições internacionais da UEFA e da FIFA. Fizeram do futebol um puro negócio e são os abutres que pairam à volta dele. No topo, é uma gente sinistra, capaz de comprar árbitros, jogos ou competições, como o Mundial do Qatar ou o que for. Muitos já foram afastados pela justiça, outros mantêm-se em funções e é para se manterem que pessoas como Rui Pinto estão convenientemente presos, numa prisão perto de si.
2. E é para que o negócio seja cada vez mais rentável que eles tentam impor um Mundial com 48 ou 64 Selecções ou uma Superliga dos Campeões, reservada aos tubarões europeus, com assinatura marcada e lugar cativo. Esta última proposta, que avança e recua, e que vai abrindo caminho por tentativas sucessivas, é um projecto sinistro, determinado por pura ganância dos dirigentes da UEFA e pela tentação sem vergonha de alguns dirigentes dos principais clubes europeus. Se for avante, não apenas significará a total adulteração da Liga dos Campeões, mas também implicará, por arrasto, a desvirtuação dos campeonatos nacionais. A quase impossibilidade competitiva de uma equipa de dimensão média/superior - como um FC Porto, um Ajax, um Tottenham - chegar à final, em confronto com os 12/15 tubarões europeus, tornar-se-á uma impossibilidade absoluta, por via administrativa e não já apenas desportiva. Por outro lado, para que a Superliga dos Campeões possa ser disputada como um autêntico campeonato, garantindo o número suficiente de jogos que o «business plan» contempla, será necessário libertar os tubarões do fardo das competições internas para que eles se possam concentrar apenas onde estará o big money. Assim, despejando os campeonatos nacionais do seu interesse, a última das propostas destes assassinos da UEFA chegou ao desplante de sugerir que a Superliga dos ricos se disputasse aos fins-de-semana, deixando a semana para os campeonatos nacionais dos pobrezinhos. De modo a que todas as atenções televisivas do público do futebol não se dispersem quando mais interessam por aquilo que verdadeiramente eles acham que lhes deve passar a interessar. Aqui, como no resto do mundo em que vivemos, não há limites para a ganância. E a única esperança é que, quando ela não conhece limites, acaba por sucumbir à própria estupidez.
3. Para fingir que se preocupa, a UEFA inventou uma coisa chamada «fair-play financeiro». O FC Porto sabe bem do que se trata: trata-se de evitar que um clube gaste mais do que as receitas que se projecta que possa vir a ter, vivendo alavancado em sucessivos endividamentos que, a prazo, são uma sentença de morte pendente. Então, a UEFA impõe um sistema de contenção de despesas semelhante ao da intervenção das troikas em países sobreendividados. No caso concreto do meu clube, eu até aplaudo a intervenção externa, de tal maneira a loucura gastadora dos últimos anos, em aquisições de jogadores a peso (que não me cansei de denunciar) estava a conduzir o clube para um caminho de ruína inevitável, a par do enriquecimento súbito de alguns. Tudo bem, o princípio parecer-me adequado para garantir que todos se defrontam em pé de relativa equidade. Não com armas iguais, mas com regras iguais. Mas então que dizer de situações tão escandalosas como (para não falar de outras) as do PSG ou do Manchester City, dois clubes-nação, sustentados por duas Fundações que mais não são do que fundos soberanos de dois Estados do Médio Oriente e que neles injectam dinheiro a perder de vista? Pepe Guardiola, que acaba de ganhar o campeonato inglês, é de certo um grande treinador, mas em dois anos ele espetou 450 milhões em compras no Manchester City e, segundo a imprensa inglesa, desperdiçou jogadores que custaram ao clube 257 milhões. Onde está o fair-play disto? E o PSG, que reúne na sua linha atacante três dos dez melhores avançados do mundo - Mbappé, Cavani e Neymar - reinando sem qualquer hipótese de oposição em França e que, por força dos seus milhões, terá obviamente lugar cativo na tal Liga dos Tubarões, embora nunca tenha ganho qualquer título europeu? Quando já se passou a fase de haver clubes detidos por multinacionais para a fase de clubes detidos por países, e países sentados em lençóis de petróleo, presididos por sheiks com dinheiro e vontade para comprar tudo o que mexe, faz sentido andar atrás de um modesto FC Porto?
Mas nem é preciso ir tão longe e tão acima. O jogo West Ham-Aston Villa, que ditava a promoção de um deles à Premier League (ganhou o Aston Villa), foi justamente chamado o jogo mais rico do mundo. Porque pelo simples facto de entrar na Premier League, o vencedor ganhava automaticamente direito a um bolo de 157 milhões, correspondente aos direitos de transmissão que cabem ao último classificado - e que, em caso de lá conseguir permanecer para o ano, sobe para 270 milhões. Dez, quinze vezes, o orçamento do Porto, do Benfica?
4. Não admira que todos queiram ir jogar para Inglaterra. O Benfica - que Luís Filipe Vieira, com aquela ligeireza e voluntarismo que o caracteriza e que o faz tomar desejos por realidades imediatas - estará na calha para ser um próximo campeão europeu (Vieira dixit), passou pela humilhação de ver um guarda-redes suplente do Barcelona recusar a ideia de ir para a Luz, preferindo rumar a terras do Brexit. E os portistas Danilo e Brahimi, sem grandes saudades minhas, e Marega, com grandes saudades, também suspiram pelos ares do lado de lá do Canal. Vão meninos, e sejam muito felizes.
5. Todavia, na hora da verdade, a final inglesa da Champions serviu-nos um espectáculo abaixo de medíocre. «Muito barulho por nada», para usar as palavras do inglês mais célebre de todos os tempos, William Shakespeare. Um triste, insonso, soporífero espectáculo, aliás convenientemente estragado logo aos 20 segundos por um árbitro em busca de fama rápida e que, para mostrar personalidade e entrar logo para a fotografia, inventou um daqueles penalties a que agora se chama de «aumento da superfície corporal» - um expediente através do qual os árbitros vêm em auxílio dos treinadores com medo de arriscar, inventando oportunidades de golo que, de outra forma, as suas equipes são incapazes de criar. Assim, vendo-se a ganhar aos 20 segundos, através de um falso penalty, o grande Liverpool do incensado Klopp, tratou de defender a vantagem até final, frente a um Tottenham que mostrou que não tinha estatuto para ali estar. Restou-me a consolação de saber que o meu FC Porto caíra nos quartos às mãos do novo campeão europeu.