Os outros
1Acabou o sonho europeu dos dois clubes portugueses candidatos ao título nacional. O Benfica parece ter jogado mais a pensar neste do que nas meias-finais da Liga Europa. O Porto, pela voz do seu treinador, disse que a sua Champions é, afinal, o campeonato de cá. É assim a realidade europeia: financeiramente muito atractiva, mas desportivamente limitada. O Benfica é eliminado por 4-4, depois de na Taça sair por 2-2, por via dessa invenção dos golos fora, que hoje já não tem justificação que valha. Em ambas as competições, embora vencendo em casa, foi, paradoxalmente, eliminado na Luz. O Porto teve um registo pior do que na temporada passada contra o temível Liverpool: passou de 0-5 para 1-6, mas agora com duas derrotas. Mesmo assim, achei ‘curioso’ dizer-se que o Porto fez boa figura nos quartos-de-final e o Benfica foi desastroso! Claro que os ingleses são melhores do que a equipa alemã, que mesmo assim arrumara a Lazio, o Marselha e o Shakthar por 4 golos em casa, e eliminara o Inter. O Benfica jogou para não perder e, como é norma, acabou eliminado, tal e qual como em Alvalade, apesar de muito prejudicado pela arbitragem em Frankfurt. Se olharmos para os semifinalistas, o Benfica, se tivesse passado, iria jogar com uma assinalável desvantagem: a de os outros clubes poderem jogar com uma equipa alternativa para o respectivo campeonato por já não estarem a lutar por nada de significativo (Chelsea, Valência e Arsenal).
Não percebo a lógica divisionista e segregacionista da UEFA, a todos os níveis, relegando a Liga Europa ( a dos outros) para uma abordagem desprezivelmente secundária. Das duas uma: ou o VAR é importante ou não. Se o é, tem de o ser para as duas provas, sob pena de se querer dizer que numa delas os erros clamorosos de arbitragem são normais. E nem sequer é uma questão de custo no mundo financeiro abastado da UEFA…
2Entre vários factores, a Liga Europa tem sido a principal causa de o Benfica jogar, quase sempre, depois do seu competidor directo, o Porto. Sendo a competição europeia às quintas-feiras, o Benfica jogava depois a um domingo tardio ou a essa invenção espúria de segunda-feira, um dia de trabalho. Eu próprio, quase sou obrigado a escrever sobre a jornada do fim-de-semana sem conhecer o resultado do meu clube, como é agora o caso. E, como é costume, lá vem a tonitruante classificação «à condição», tão do agrado (futebolisticamente disfarçado ou literariamente indigente) de certos jornalistas e comunicadores.
Sobre esta precedência dos jogos de um clube em relação a outro, há quem diga que é melhor jogar antes e há quem defenda que é preferível jogar depois. Faz-me lembrar a questão de ser melhor ou pior num desempate por penáltis, começar primeiro ou ser o segundo. Nesta matéria, e em boa verdade, tudo depende do que fizer o que primeiro joga (ou remata). Se tem sucesso, a pressão vira para o outro lado, se as coisas lhes correm mal, a outra equipa (ou rematador) ganha um ânimo adicional, ainda que continue a ter a mesma necessidade de vencer ou de meter a bola na baliza. No caso dos jogos, não podendo agora serem à mesma hora do mesmo dia (excepto nas derradeiras jornadas), se pudesse escolher, a minha equipa jogaria primeiro e, nos penáltis, seria também a que iniciaria o ritual do desempate. Porquê? Não sei responder, é intuição misturada com emoção.
3Como já aqui escrevi, acho que as conferências de imprensa ‘obrigatoriamente’ realizadas antes dos jogos, seja com uma forte equipa nas competições europeias, seja com um modestíssimo clube na Taça de Portugal, são mais do mesmo, com lugares-comuns, interjeições de diversa ordem e considerações tautológicas. Aliás, difícil é não ser assim, pois imagino o que é para um treinador dos chamados grandes ter de fazer umas cinquenta ou sessenta ‘antevisões’. Neste aspecto, Bruno Lage tem sido uma lufada de ar fresco. Muitas vezes não segue o guião fastidioso do costume, dá explicações e analisa contextos com algum interesse (pelo menos, para os benfiquistas), não usa esse modismo tonto de ‘bicadas’ e ‘soundbites’ para falar de uma ‘outra equipa’, que não as que se vão defrontar, não é exuberantemente palavroso, nem zangadamente histriónico. Na antevisão de um dos últimos jogos, apreciei a parte em que refere que não deve haver incómodo em pronunciar o nome dos directos rivais ou de exprimir uma apreciação elogiosa a jogadores de outras equipas. Coisa simples, portanto. O certo é que, amiúde, vejo colegas seus falarem - sobretudo referindo-se ao Benfica - como (a) «outra equipa» ou (o) «outro clube». É feio e deselegante. Nenhum de nós gosta que o tratem por «o outro», como nenhum clube deve ser chamado a não ser pelo seu nome. Pois com o Benfica há um ‘outro treinador’ que simplesmente chama sempre ao Benfica «o outro». Deve queimar-lhe a língua dizer o nome.
4O campeonato está perto do fim e todo o cuidado em não desestabilizar as equipas e os jogadores é fundamental. Dentro de um mês, a ‘época da caça aos talentos’ vai começar para decorrer até ao fim de Agosto. Pois não é que, quanto ao Benfica, não há dia em que não se leiam notícias (?) sobre o interesse dos do costume - Real Madrid, Barcelona, Man City, Man United, Juventus, etc. - em contratar meia-equipa encarnada. Não há, ao menos, o respeito institucional e contratual que se deveria impor em momento tão decisivo de uma temporada? Afinal, o defeso - já de si estupidamente avantajado - passou a ser todos os meses, dias e horas? É claro que parte destas iniciativas (reais, presumidas ou tácticas) está nas mãos dos agentes intermediários e empresários de jogadores, que tudo controlam e baralham, indiferentes aos interesses desportivos dos clubes. O que eles querem é ganhar comissões obscenas, quanto mais turnover mais recebem, quanto mais incharem as transacções, mais inchados ficam. E na UEFA e FIFA (e também a nível doméstico) há castigos para um alargado cardápio de infracções, e estes manobrismos com as épocas a decorrer e fora do período de transferências não são objecto de qualquer reparo. Por exemplo, no Benfica, o que pensarão rapazes de 19, 20 ou 21 anos no meio de tanta girândola de milhões e milhões à sua volta, com comilões a desfrutar a gula insaciável de comissões, fees, prémios e outras prebendas. É, por isto, que não gosto nada de ‘pactos’ e ‘permutas’ que sempre podem surgir quando um clube fica muito dependente de um quase monopólio de intermediação nas compras e nas vendas. O que se passa em redor do nome de João Félix é preocupante. Porquê tanta pressa? Que ganha o Benfica com isso? Ou o jogador que, com 19 anos, tem uma vida de futebolista consagrado à sua frente? Nestas coisas, todos arriscam: o clube que deixa de ter o jogador, o clube para quem é transferido e, obviamente, o atleta. Só um interessado no negócio nada arrisca: o comissionista que recebe, independentemente dos lucros cessantes ou danos emergentes associados ao jogador. Ou seja, o outro…
Neste contexto de perturbação (sim, no mínimo) do colectivo e da cabeça de jogadores, bem gostaria de ver o Benfica a afirmar sem hesitações alto e pára o baile a este tipo de manobra sobre a ‘mão-de-obra’. Até para que, na próxima época, se possa consolidar uma grande equipa com estes novos e brilhantes jogadores, pois que - segundo li em declarações recentes do principal e competente responsável financeiro - o Benfica não está agora dependente de receitas extraordinárias. Veja-se o caso paradigmático do Ajax que, embora e tal e qual como o Benfica, não tenha poderio para reter por muito tempo talentos, tem gerido com prudência e gradualismo estratégico o inevitável assédio dos todo-poderosos.
5Volto ao VAR e ao jogo Man City-Tottenham. Uma partida prodigiosa, com 7 golos e futebol puro. Quando, ao minuto 92, a bola entra e o vencedor da eliminatória vira, viu-se, em plenitude, a beleza deste desporto e a emoção sem limites de um golo decisivo. De um lado, os que o marcaram (jogadores, treinador, adeptos) exuberantes; do outro, o dramático conformismo de ‘morrer na praia’. Eis que, um minuto depois, os papéis se invertem por acção do VAR. Havia um offside de centímetros que, ninguém (mas mesmo ninguém) viu no Estádio. Ainda que acertadamente, se anulou a festa do golo, feita de vibração, espontaneidade e autenticidade. Este é, sem dúvida, um calcanhar de Aquiles do VAR que, bem sei, é difícil evitar.
O erro é inerente à condição humana, desde que não seja sinónimo de incompetência ou de desonestidade. Com este protocolo do VAR, o erro não percepcionável pelo homem está a ceder o lugar à máquina déspota, sem alma, por vezes quase desumana, que julga da mesma maneira um offside de dois metros e outro de 5 centímetros, neste caso como se fosse possível fazer coincidir o milésimo de segundo em que a bola sai do pé do jogador que faz o passe com os tais centímetros de aparente fora-de-jogo. Em tais circunstâncias, há erros (ou melhor, inexactidões) que também deveriam ter direito a respirar para não abafar a vibração de um jogo.