Os novos tempos da Seleção
Sou do tempo em que a Seleção começava logo a jogar no preciso e exato momento em que o selecionador anunciava a convocatória. Aí, o povo fazia contas: tantos do Benfica, tantos do Sporting, tantos do Porto e uns poucos do Belenenses, dos Vitórias, mais tarde, do Boavista.
O que interessava a todos, está bem de ver, era saber qual dos grandes ganhava o jogo da convocatória. Mas ainda mais importante era, depois, discutir-se, no café, nos bares, nas tertúlias, as escolhas do selecionador. As conclusões eram óbvias: o selecionador puxava para o clube com maior número de selecionados.
Para esse, o clube com mais selecionados, era um orgulho. Para os outros, era, mais do que uma desilusão, uma injustiça. E por isso, as seleções eram apoiadas por públicos diferentes, flutuantes, coloridos, porque dependia da equipa nacional ter mais adeptos do Benfica, do Sporting ou do Porto.
Havia, porém, piores consequências. Dentro da seleção era necessário que alguém soubesse gerir estados de alma e uma quase inevitável segregação entre os próprios jogadores, que definiam o seu próprio apartheid nas mesas de jantar ou nas rodas de lerpa.
Admito que, depois do árbitro apitar, as esmagadora maioria pensasse apenas e só na equipa, como um todo, mas também havia quem só passasse a bola aos seus, quem só quisesse que fosse um dos seus a marcar golo ou que pouco interessado estivesse em emendar e tapar o erro de um dos outros. A seleção era isto. Um conjunto de bons jogadores, habituado a viver num universo pequenino e, por vezes, até mesquinho, que se definia como uma equipa formada pelos nossos e pelos outros.
Depois, os melhores bateram asas e foram para as melhores equipas do mundo e ninguém mais pensou em fazer contas sobre se o vencedor da convocatória era o Real Madrid, o Manchester United, o Borussia Dortmund ou o Mónaco. Quanto àqueles poucos eleitos do Benfica, do Sporting ou do Porto, a minoria passou a ser tão óbvia que qualquer ideia de segregação -se ainda existe - torna-se ridícula e facilmente desmantelada pela maioria de estrangeiros.
A verdade é que a Seleção Nacional não apenas beneficiou da superior qualidade dos jogadores de hoje, mas, e muito, da total mudança de estado mental e de atitude profissional dos eleitos.
Fernando Santos tem essa felicidade. Dispõe de uma equipa formada por jogadores de uma qualidade verdadeiramente sublime e pode trabalhar num universo com consciência do coletivo, solidário, unido, onde as naturais diferenças de estatuto e de títulos internacionais é aceite com bom senso e inteligência.
Não me venham, pois, cá dizer que antigamente é que era bom, que, antes, o futebol era puro como o ar das serras (as que entretanto não foram incendiadas). Não é verdade. Antigamente, o futebol português era como o país, pequeno, cinzento, egoísta, invejoso, e, sobretudo, inculto.
E se ainda hoje existem óbvios e bem visíveis resquícios desse tempo de atraso cultural e mental, a verdade é que a Seleção há muito que o ultrapassou, vive, hoje, num mundo mais aberto, sem fronteiras, sem complexos, internacionalizou-se, é, hoje, uma marca com garantia de qualidade mundial e com um prestígio que enche de orgulho os portugueses.
Há quem diga que a Seleção tem um novo perfil de adepto português. Mais jovem, mais familiar, mais festivo, mais culto e, por isso, menos agressivo. Eu prefiro acreditar que a Seleção apenas criou condições para ser amada e estimada pelos portugueses do Portugal democrático e livre. E esses são, felizmente, muitos mais.