Os médicos, uma homenagem

OPINIÃO29.03.202004:00

O médico

1 O pensador alemão Ernst Jünger escreveu que, muitas vezes, «são coisas bastante diferentes que inquietam o médico e o doente». O médico tem de tomar decisões que por vezes não são claras nem sequer existem para doentes. Mas um médico não é só um técnico, longe disso: o médico, como citei noutro contexto, «se quer merecer o seu nome», deve, em primeiro lugar, «iluminar» o paciente: «a primeira virtude curativa» que o médico «despende, deve encontrar-se oculta na voz»; a medicina não é uma «ciência mecânica», mas uma ciência que ilumina.
Esta ciência que ilumina, que resgata o corpo de um qualquer escuro que ainda não se conhece, é uma ciência humana, mas também técnica, cada vez mais. E na luta contra o Covid-19 está claro isso. São precisas máquinas, máquinas fundamentais para salvar. Mas o que continua por aí ainda é isto, o que sempre esteve desde os tempos antigos: a coragem humana de muitos médicos.

O canto

2 Em Itália, à janela canta-se. As pessoas saem às suas varandas e fazem uma orquestra à distância: acordeões, tamboretes, pandeiretas, violas e voz, o belo sul de Itália, mas não só, o norte, o tão violentamente atacado norte, todo o país, mostra esta resistência dos humanos - a alegria. Uma alegria consciente e lúcida, não desnorteada nem tonta, uma alegria de resistentes, de pessoas que sabem que há alguns que morrem, outros que estão a tentar não morrer, outros a tentar salvar; e este canto é que vem de Itália é, então, um dos mais extraordinários cantos de motivação deste século. Energia atirada para os doentes graves e para os médicos. Um exército civil que infelizmente não pode fazer nada de imediato e prático, a não ser isto, que já é muito: recolher-se nas suas casas.
E este sair às janelas é por isso extraordinário: uma energia atirada para o ar, uma energia de resistência que talvez ajude a tornar o ar biologicamente mais respirável. Com maior concentração de vida que de morte.

Nasrudin

3 Nasrudin é uma personagem clássica. Personagem real, que terá nascido e ensinado algures na Turquia. Mas que rapidamente entrou numa espécie de mundo da narrativa tradicional ficcional. As histórias em que entra, milhares delas, são uma mistura entre sabedoria e ingenuidade.
Por estes tempos, recorda-se muito a história de Nasrudin e da Peste.
«Ia a Peste a caminho de Bagdad quando encontrou Nasrudin. Este perguntou-lhe:
- Aonde vais?
A Peste respondeu:
- A Bagdad, matar dez mil pessoas!
Depois de algum tempo, a Peste voltou a encontrar-se com Nasrudin que, muito zangado, lhe disse:
- Mentiste-me!
Disseste que matarias dez mil pessoas e mataste cem mil.
E a Peste respondeu-lhe:
- Eu não menti, matei dez mil. O resto morreu de medo.»
É uma história clássica do Oriente. Mas, neste caso, infelizmente, é bom ter um medo lúcido. Esta peste mata mesmo.
Louvor

4 É para mim essencial esta frase de Francis Bacon, que em torno das ideias de saúde e da doença escreveu: «Quando estiverem doentes, preocupem-se principalmente com a saúde; quando estiverem saudáveis preocupem-se com a acção.»
Ver alguns médicos e enfermeiros, mesmo já em esforço e em terríveis condições de cansaço, a continuar a agir, um pouco por todo o mundo, e já neste momento em Portugal, eis o que nos deve merecer o agradecimento. Honra e louvor para a medicina, honra e louvor para os nossos médicos e enfermeiros. Depois disto tudo passar, não nos iremos esquecer deles.