Os lances e a competência
Li recentemente um artigo (de alguém por quem tenho elevada estima), dando conta do seu «espanto» ao ler a minha análise sobre o dérbi da Luz.
Nesse dizia que o árbitro cometera vários erros técnicos e disciplinares, embora tivesse acertado nos momentos maiores da partida. Mas dizia também - e reforço agora - que estávamos na presença de «um jovem com personalidade, coragem e qualidade».
Compreendo o «espanto» porque, numa interpretação mais restritiva, fica a ideia de ter havido ali uma contradição.
Na verdade, não houve. Não houve nem contradição nem defesa corporativa. A arbitragem dos dias de hoje não precisa de pontas de lança que a defendam cegamente, contra tudo e contra todos. Já aprendeu a evoluir com a crítica, já se habituou a ser escrutinada e a aceitar, com maior ou menor concordância, as consequências de ser um setor tão exposto e apetecível ao olhar faminto de tantos.
Confundir a tentativa de manter um discurso positivo com uma espécie de defesa associativa é apenas sinal de que as pessoas ainda estão a habituar-se a uma realidade recente: a de que uma abordagem crítica não tem, necessariamente, de ser corrosiva ou bélica.
O que houve e haverá sempre são diferenças de perspetiva. Diferenças entre quem analisa racionalmente e entre quem olha, sente e ouve com a voz do coração.
A verdade é que, para a maioria dos adeptos, a qualidade de um árbitro está diretamente ligada ao seu desempenho por partida. Se acertou, fez o seu trabalho. Se errou, não presta.
A minha função é ir além dessa verdade emocional. Claro que devo analisar lances com pragmatismo e isenção, mas há também uma obrigação moral de acrescentar valor, de ir mais além, quer no conteúdo, quer na forma.
Acreditem quando vos digo: é possível errar muito numa partida e, ainda assim, ter qualidade e competência para a função.
É possível acumular maus julgamentos e ter potencial visível, capacidade intrínseca, valor inato.
Achar que um árbitro que faz um jogo mau é incapaz de ter valor é o mesmo que rotular como flop um jovem talento que, lançado numa partida decisiva, cometa erros graves.
A verdadeira qualidade de um árbitro percebe-se pela forma como pisa o campo. Como acompanha o jogo e se movimenta. Percebe-se pela forma como se relaciona com os intervenientes, respeitando-os e fazendo-se respeitar. Pela forma como comunica com os colegas. Pela forma como mostra presença, como usa o apito ou como ignora a pressão. Percebe-se pela forma como impõe autoridade sem parecer autoritário. Pela forma como vende as suas decisões. Pela forma como gere os momentos de jogo. Percebe-se pela forma como se expressa, como se afasta, como se silencia.
O analista de arbitragem deve também transmitir essa ideia para o exterior, ainda que num jogo com penáltis por assinalar ou vermelhos por exibir. Se só descrever estas factualidades, será apenas mais um a dar carta branca para a chacina pública de um profissional que também é pai, filho e marido de alguém.
Em época de incêndios, é gasolina quem quer. Não me levem a mal se escolho ser água, sempre que achar que tal se impõe.