Os dados pareciam lançados para um passeio benfiquista
Os três primeiros jogos que vi do FC Porto esta época - com o Mónaco, o Krasnodar, na Rússia, e o Gil Vicente - deixaram-me perplexo, abespinhado e sem saber o que dizer. Como era possível que um treinador com provas mais do que dadas apresentasse, após cinco semanas de trabalho, uma equipa - (ou melhor, várias equipas, variando sem critério aparente) - que à vista desarmada não tinha uma ideia de jogo, por mais ténue que fosse? Que parecia absolutamente incapaz de chegar ao golo sem ser através de um pontapé feliz, como o de Sérgio Oliveira na Rússia? Com dois centrais rotinados e consagrados que abriam súbitas brechas incompreensíveis? Outros, que eram inabaláveis de qualidade e que de repente pareciam principiantes sem talento algum, como Alex Telles, Danilo, Soares ou Corona (que passou a chamar-se Tacatito e foi como se fosse outro jogador, irreconhecível)? Que, apesar de aquisições de jogadores de ataque de evidente valor, como Nakajima, Luis Díaz, Zé Luís, o treinador tenha lançado mão, para enfrentar o primeiro jogo da Champions de um Soares em crise de forma e de um Marega chegado dias antes e com peso a mais? E entrar no mesmo jogo com um flanco direito de absolutos estreantes naquelas cavalarias, como o eram Manafá, adaptado a defesa-direito, e um Romário Baró, que tem tanto de genica e potencial talento como de falta de lucidez e ousadia (parece ter um torniquete que lhe puxa a perna para atrasar sempre a bola e nunca a passar para a frente: no lugar de Otávio, jamais teria feito o passe em profundidade que deu o segundo golo na Luz)? E como foi possível estrear Saravia na segunda mão do jogo com o Krasnodar, no que se temia e confirmou ser um desastre completo - (aliás, como foi possível que Sérgio Conceição, que parece ter acertado em todas as outras seis contratações desta época, tenha falhado pela quarta vez a contratação de um defesa-direito?). Como foi possível aquele meio-campo contra o Gil Vicente, de um futebol completamente inócuo e estéril, metido ao bolso por um grupo de rapazes reunidos uns dias antes na estação da CP de Barcelos? E, enfim, como foi possível aquela limpeza arrepiante de em 25 minutos e três remates estar a levar 3-0 do Krasnodar no Dragão, transmitindo a amarga sensação de que, enquanto que eles tinham estudado as nossas fraquezas ao pormenor, nós nada sabíamos deles e nada havíamos aprendido com a feliz vitória da primeira mão?
O afastamento da Champions e a entrada desastrada no campeonato foram, não há outra forma de o dizer, da responsabilidade quase exclusiva de Sérgio Conceição. Porque, independentemente das vicissitudes dos jogos e dos erros individuais e colectivos cometidos, a impressão mais forte que ficou foi a de que a equipa entrou na época completamente impreparada e sem ideia alguma do que devia fazer em campo. Um grupo de simpáticos rapazes acabados de chegar de férias, com a ideia, tragicamente errada, de que tinham muito tempo para afinar processos. E, à frente deles, um treinador regularmente mal-disposto, que não cumprimenta os adversários quando perde, que não retribui nem agradece os elogios quando os recebe dos adversários (Bruno Lage) e cujo espírito de guerrilha permanente e latente é bem capaz de ser prejudicial à equipa nos momentos em que ela mais precisa de calma e lucidez, como nas finais das Taças da Liga e de Portugal.
Do outro lado, Bruno Lage, a grande revelação da época passada e que só o foi porque Mourinho deu com os pés às insistentes e públicas súplicas de Luís Filipe Vieira. Se Vieira teve aí a sorte que não merecia, Lage também a teve no arranque: podia ter ficado logo pelo caminho no primeiro jogo, quando esteve a perder por 2-0 na Luz, com o Rio Ave. Podia ter perdido a seguir com o Santa Clara, e com o Guimarães podia e merecia ter perdido, como ele próprio o reconheceu. Mas, a partir daí, soube merecer a sorte e, lá está, fez o mais simples: não complicou. Chamou os melhores e pô-los a jogar nos lugares certos, mantendo, porém, a motivação de todos em alta. Teve ali uns dois ou três jogos em que - é a minha opinião sincera - outros deuses o ajudaram decisivamente. Mas isso não lhe tira todo o mérito de 20 vitórias e 1 empate em 21 jogos consecutivos do campeonato. É lugar comum dizer-se que o Porto perdeu um campeonato que tinha no bolso, com 7 pontos de avanço. Eu não subscrevo essa opinião. É verdade que o Porto perdeu 9 pontos em 19 jogos - o que não me parece nada de mais, sobretudo para quem simultaneamente disputou as Taças até às finais e a Champions até aos quartos, com o brilhantismo com que o fez. O que não foi normal foi o Benfica só ter perdido 2 pontos em 38 em disputa.
E assim, quando o Benfica de Bruno Lage - sempre tranquilo, sempre humilde, sempre um senhor - entrou nesta época goleando o Sporting, arrecadando a Supertaça e o torneio dos Estados Unidos, e vencendo no Restelo, os dados pareciam lançados para um passeio benfiquista até Junho. Até que, à terceira jornada, o jogo da Luz mudou todas as perspectivas. O Benfica continua o principal candidato, mas já não a um passeio.
O que acima de tudo, fez mudar a maneira de olhar para os dois rivais, foram quarto factores preponderantes. Primeiro, a maneira absolutamente categórica como o FC Porto ganhou o jogo na Luz, de que já não me lembro desde os históricos 0-5 para a Supertaça. Segundo, a incontestável lição táctica e estratégica que Sérgio Conceição deu a Bruno Lage, mostrando que nem ele deixara de ser o grande treinador que conhecíamos nem este era o génio invencível que já se proclamava. Terceiro, a demonstração de que o Benfica tem pontos fracos e anuláveis - que, bem analisados, já se tinham percebido nos jogos com o Sporting e o Belenenses, em que os resultados mentiram demasiado. Quarto, a constatação de que, embora em aperto financeiro e de tempo, o FC Porto soube reforçar-se com critério e qualidade, excepção feita ao lugar de lateral-direito, o que já vai parecendo uma maldição.
E é assim: de bestial a besta, de besta a bestial: o lugar de treinador é o mais incerto do futebol.