Os clubes e o seu memorial do convento
Os clubes profissionais de futebol reuniram-se no Convento de S. Francisco. O objetivo não era, propriamente, o de expiarem os seus pecados, nem o de se recolherem em meditação profunda sobre os caminhos escolhidos pela velha congregação, onde há muitos devotos, mas nenhum santo.
A conclusão da cimeira foi a do sentimento de culpa... do governo. Segundo Carlos Pereira, o porta-voz, os clubes estão fartos de tantos deveres e de tão poucos direitos. Querem, por isso, ser ouvidos em «matérias estruturantes».
«Amanhã, é amanhã» - proclamam, assim, a urgência da audição e colocam não um desafio, mas uma ameaça, admitindo todas as formas de protesto «incluindo parar os campeonatos».
Pedro Proença, que da congregação tem sempre a missão mais ecuménica, põe água benta na fervura do presidente do Marítimo e acha que «somos pessoas de discussão». O que é uma verdade. Nada define melhor a congregação dos clubes profissionais de futebol do que a de serem gente de discussão.
Há, pelo que se pode perceber, três problemas essenciais para serem discutidos com o governo que, entretanto, tem em mãos esse pequeno pormenor da discussão do orçamento de estado. O primeiro é a questão da violência; não porque os clubes se tenham inteirado da realidade e procurado resolvê-la, mas porque há um projeto de lei no Parlamento, ao qual A BOLA deu notícia em primeira mão e que aponta para uma solução real e efetiva do flagelo; o segundo é o do costume: dinheiro; o terceiro é igual ao segundo, mas na forma dos seguros desportivos.
Da conventual presunção assumida do direito a ter mais dinheiro da Santa Casa, tal como das inquietações manifestadas com os seguros desportivos se entende, no essencial, a reivindicação, embora pareça manifestamente exagerada a ameaça do lock-out patronal aos campeonatos. Fiquemo-nos, pois, pela questão maior da violência e pelo essencial assunto adjacente das claques oficiais, oficiosas, ou simplesmente clandestinas.
É evidente que essa é uma questão estruturante da suposta indústria de futebol em Portugal ou em qualquer parte do mundo e, sendo decisiva para a defesa do adepto e de um espetáculo de família, deveria, há muito e muito tempo, ter sido objeto de uma decisão em sede própria, fosse num convento ou num pátio das cantigas, pela responsabilidade na autorregulação, por parte dos clubes.
Há, como sempre se provou, um problema nessa autorregulação: é que os clubes que decidem penas com que se condenam a si próprios e todas as artimanhas com que se defendem dos seus regulamentares deveres sociais e desportivos, nunca estiveram verdadeiramente interessados em resolver a questão da violência e a relação com as suas claques organizadas. Ou porque as direções precisam de uma guarda pretoriana disponível, ou porque têm medo da sua ação em momentos de divisão e de protesto, ou porque, de facto, ninguém quer abrir uma caixa de pandora que os outros também têm e também não abrem.
Torna-se assim estranha a ideia de urgência na audição do governo, agora que existe um projeto de lei contra a violência que é mais penalizador, mas é, no essencial, um documento que, a ser aprovado em sede parlamentar e passar no rigoroso crivo constitucional, concorrerá para defesa dos direitos dos cidadãos que gostam de futebol e o querem partilhar nos seus tempos de família.
Dizem, os clubes, que o futebol não foi ouvido. Apesar de nunca terem pensado nisso, os clubes não são, sozinhos, o futebol; além do mais, trata-se, na verdade, de um problema de toda a sociedade civil.