Observações em dias de muito frio

OPINIÃO30.08.202004:00

Histórias do Senhor Kraus neste intervalo. O chefe e os seus Auxiliares, funcionais e sabujos. E um frio estranho.

A respiração do Chefe

- Estava um daqueles dias frios e respirar tornava-se um acto público, uma coisa visível.

- Ninguém respira discretamente nestes dias de muito frio - disse o Chefe.

E era verdade: a expiração de qualquer indivíduo abria um sulco no ar, como se o ar fosse pintado ou riscado com uma outra cor. A respiração naqueles dias já não era um acto privado ou partilhável somente por casais apaixonados. Respirar era como que um discurso, só que num volume mais baixo.

- Expirar torna-se quase tão visível como cantar.

- É verdade.

- Como uma voz que não fala - disse o Chefe.

- A sua respiração tem, de facto, um aspecto magnífico! - disse o Auxiliar, de repente, como se tivesse acabado de se lembrar de algo.

O Auxiliar continuou:

- Vossa excelência, nestes dias de frio, nem precisa de dizer nada. Só pelo aspecto do ar que sai do interior de sua excelência, torna-se evidente que caso decidisse falar vossa excelência falaria como nunca. Esse seu ar é magnífico! - repetiu.

O Chefe agradeceu, procurando apresentar uma cara modesta. Ele era bom nisso; como uma malabarista: o Chefe sabia fazer caras. Tinha-as guardado algures como se guardam pequenos papéis no bolso com números de telefone. Quando se precisa de um número lá se procura nos bolsos o papel certo. Com ele era a mesma coisa: procurava dentro de si a cara apropriada ao momento. Demorava apenas uns milésimos de segundo a encontrar a coisa. Estava treinado.

- Você exagera - disse para o Auxiliar.

- Não, não, é magnífica. Ninguém expira assim!

Na verdade, o Chefe ouvia estas palavras como alguém que ouve que dois mais dois são quatro. Alguém lhe dizia o óbvio: ele era excelente sobre todos os pontos de vista, e a sua respiração - em particular a expiração - era magnífica! Ele sentia, de certa maneira, que o mundo, não de um ponto de vista geral, mas o mundo concreto, a natureza, os elementos da atmosfera, deveriam, em conjunto, se falassem e fossem delicados, agradecer-lhe esse brilhante modo de expulsar dióxido de carbono. Ninguém expulsa o dióxido de carbono como eu, pensava o Chefe. Contudo, para fora, recuperava as frases modestas:

- Você exagera, Auxiliar. A minha expiração é simplesmente ar.

- Ar?! - exclamou o Auxiliar. - Não, nada disso. É outra coisa. Há algo na forma como a sua expiração se destaca do resto da atmosfera que lembra histórias da mitologia antiga. Há qualquer coisa de secreto e misterioso.

O Chefe estava a gostar de ouvir o Auxiliar, aquela música embalava-o, por assim dizer. De facto, tinham subido pelas escadas até ao 4.º andar e ele mal dera por isso.

Ele descobria, então, naquele momento, uma lei que misturava o mundo da fisiologia e da psicologia: ser elogiado faz esquecer a fadiga. Se um tipo - pensava o Chefe para si próprio - for sendo elogiado durante todo o caminho, sobe, nas calmas, a pé até ao topo da torre Eiffell. Gostou tanto desta ideia que até parou para a escrever num bloco de notas. Quando tivesse tempo, venderia aquele raciocínio a atletas necessitados.