Obrigado, Marega
1 - Parece que houve dois portugueses que duvidaram que Marega tivesse sido alvo de insultos racistas em Guimarães: um, foi o comentador Rui Santos, da SIC; o outro, foi, sem surpresa, o deputado André Ventura, do Chega. Este, por uma questão de princípio, porque a sua coutada político-eleitoral é o território onde habitam os racistas, os inimigos dos imigrantes pobres, os defensores da supremacia lusa e branca, os protectores dos abusos policiais, do movimento Zero e desse caldo de cultura cujo cheiro pestilento conhecemos bem demais. Não sei se por convicção ou por estratégia, é deles que se alimenta André Ventura e o Chega. E por isso, ele logo se precipitou a declarar que o episódio de Guimarães não passava de um caso mais de histeria anti-racista e de hipocrisia. No caso de Rui Santos, admito que lhe faltasse a prova final de que, além dos insultos em coro, bem audíveis, de que Marega foi alvo (coisa banal no futebol), ele tivesse também sido alvo de insultos específicos motivados pela cor da sua pele. Essa dúvida, essa prova final, foi produzida pelo testemunho, que se louva, do comandante da PSP presente no local, Iuri Rodrigues, que declarou na TVI ter escutado claramente os insultos racistas dirigidos a Marega. Honrou a sua farda, honrou a PSP. E deixou Ventura nu para quem tiver olhos para ver.
2 - Sempre tive uma simpatia especial pelo Vitória de Guimarães e parte dela devido à incrível dedicação da sua massa de adeptos. E isto, mesmo não esquecendo (é terrível a memória…) o episódio em que o Vitória, seguindo o Benfica no assalto ao que julgaram ser o moribundo FC Porto, vítima do Apito Dourado e do julgamento sumário do patético Michel Platini, quis aproveitar a situação em benefício próprio: o Porto era despromovido e afastado, o Benfica, 2º classificado no campeonato, ganhava a vaga de qualificação directa do Porto para a Champions, e o Vitória, 3º no campeonato, ganhava a vaga do Benfica na eliminatória de qualificação. Abutres cobiçando um cadáver, todavia adiado. Não esqueci.
Mas ultrapassei, e a minha simpatia pelo Vitória ainda cresceu mais quando recentemente roubaram ao Benfica a Taça de Portugal que já tinham como certa. Mas o que se passou domingo em Guimarães foi uma vergonha para o Vitória e para parte dos seus adeptos. Só havia numa maneira de varrer a testada, que era demarcarem-se claramente daquilo - a parte saudável do clube, a parte saudável dos adeptos. Infelizmente, o que se viu, foi o contrário.
O comunicado da claque do Vitória é uma vergonha a acrescentar a outra. As declarações do seu presidente no final do jogo, a justificar o comportamento da claque com «atitudes provatórias de profissionais do FC Porto» serviu apenas para mostrar como, apesar de recentemente empossado, é mais um que já está refém das claques e como é decisiva a luta que Frederico Varandas trava no Sporting contra esta doença venérea que tomou conta do futebol português e que é a chave do poder em todos os clubes e para todos os presidentes. Pena é que o habitual temor reverencial dos jornalistas os tenha inibido de fazerem ao presidente do Vitória as duas perguntas que se impunham: que atitudes provocatórias estiveram na origem dos insultos racistas? De que profissionais do FC Porto?
24 horas volvidas, depois de constatar que o caso já tinha dado a volta ao mundo, de Espanha à Nova Zelândia, pelas piores razões tornando o nome do Vitória de Guimarães célebre em todo o planeta futebol como nunca antes, depois de escutar a indignação até do primeiro-ministro e do Presidente da República, a Direcção do Vitória veio corrigir a estratégia: agora, já quer o caso investigado, os maus adeptos identificados e até, num golpe de mestre congeminado pelos seus advogados, anuncia que se vai constituir assistente no processo-crime a instaurar. Ou seja: de réu, o Vitória passa a vítima. Dos próprios adeptos. Se tivesse começado por aí, ainda teria merecido alguma credibilidade. Agora, estamos perante a tal hipocrisia de que fala André Ventura, mas ao contrário.
3 - Mas que não se preocupe a Direcção do Vitória: nada vai acontecer ao clube. Se acaso alguém lhe der um ou mais jogos de interdição do estádio, basta aos seus advogados pedirem aos do Benfica cópia da petição que se manda aos tribunais comuns para anular as sentenças da justiça desportiva, estabelecendo como doutrina que uma coisa é o clube, outra os seus adeptos. Ou basta escutar o secretário de Estado da coisa e o seu inefável discurso redondo e inócuo para perceber que é só deixar passar uns dias, acalmar a indignação e, como diz Marega, passear umas criancinhas com uns cartazes contra o racismo no futebol e siga o baile.
4 - Devemos, pois, a Moussa Marega - todos - a coragem de ter resistido a tudo, aos apelos e agarrões dos seus próprios colegas de equipa e, sim, aos próprios interesses da sua equipa num jogo decisivo, e ter imposto, acima de tudo, o seu direito a ser respeitado como ser humano. E o futebol, que se lixe. Quando um bando de animais travestidos de seres humanos e acobertados em multidão, insulta um jogador só porque ele é preto e acaba de marcar um grande golo, isso não tem nada a ver com futebol. O futebol é Pelé, Eusébio, Jordão, Mário Esteves Coluna. Madjer, Salah. E Cruyff, Maradona, Messi, Ronaldo.
5 - Entretanto, e graças ao golo de Marega, o FC Porto ganhou em Guimarães. E, no meu registo de memória, ano em que o Porto ganha em Guimarães é campeão. Mas não vou renegar o que escrevi: dei este campeonato como perdido e continuo a achar que será um milagre se o não for. Não tanto pelos sete pontos de desvantagem e menos ainda por ver qualquer evidente superioridade no futebol jogado pelo Benfica. Mas porque, jogo após jogo - e até ao do Dragão - via um Benfica terrivelmente eficaz e terrivelmente favorecido pelos deuses da fortuna. Perdi a conta aos jogos em que o Benfica era dominado durante quase todo o jogo e depois resolvia-os nos últimos dez minutos, a golpes de eficácia, de descrença alheia ou de pura sorte. Mesmo no Dragão, em que tanto se queixaram, não sei bem de quê, tiveram duas oportunidades e converteram as duas. Parece que essa sorte acabou, ou foi suspensa, no jogo contra o Braga, que eu não vi, mas em que me contaram que tiveram quatro e não converteram nenhuma. Bem-vindos ao reino da normalidade, onde nem sempre ganha quem mais joga e mais ocasiões de golo cria! Contra o mesmo Braga, nós perdemos falhando dois penáltis, o que já é para além do normal.
6 - Estava no Brasil, ao lado de um muito conhecido e batido jornalista desportivo brasileiro, quando li a notícia da suspensão do Manchester City por dois anos das competições da UEFA, por violação grosseira do fair play desportivo. Mais uma vitória da verdade e da justiça que se fica a dever ao nosso criminoso Rui Pinto. Embora não alimente muitas esperanças sobre a manutenção deste castigo ao poderoso clube das Arábias, supostamente inglês, pelo menos já é bom que a sua careca fique a descoberto. Assim se percebe como é que o Manchester City pode gastar 300 ou 400 milhões por temporada a comprar jogadores para ditar cartas na Europa. Falta agora ir atrás dos outros: o United, o PSG, o Real, o Barça, o Atlético, etc. Mas o meu entusiasmo durou pouco quando o tal jornalista brasileiro me disse: «Miguel, você vai ver, se isto for avante, é o pontapé de saída para o tal campeonato europeu dos ricos, cujo projecto também foi denunciado pelo Rui Pinto. Eles só estão à espera de um pretexto. Se atingirem mais um dos muito grandes, vai ser inevitável.» Talvez ele tenha razão, talvez o futebol como eu aprendi a amar já não valha a pena ser amado. O jogo ainda é o mesmo, mas a gente que lá anda e o frequenta de perto, nas bancadas e fora delas, não é frequentável.