O velho e a bola
SOU o Santiago, o velho do Hemingway. Os 84 dias sem fisgar um único peixe não me afundaram no desespero, não me mataram a esperança. Ou o sonho. Ver outros pescadores a rirem-se de mim, nos meus fracassos, não me zangou, não me amachucou. E terem-me roubado o rapaz também não me encharcou de rancor o coração de onde ele nunca sairá. Ao dia 85, grande peixe tocou-me a linha. Percebi que era o maior que alguma vez me aparecera. A força de tanto puxar por ele, arrancou-me a pele da mão, arrastou-me pelo turbilhão em redor, não o larguei, não desisti. Após um dia e uma noite na batalha, outro dia se anunciou. Senti a angústia a colar-se-me ao corpo e não lhe cedi. Senti a fome e a sede, a boca salgada e o gosto a carne crua e não me resignei. Senti a mão a enrijecer-se e a tornar-se inútil e não deixei de pensar que não havia nada mais belo, mais grandioso, que aquela luta pelo peixe, comigo.
Quando, enfim, o peixe morreu, apareceram os tubarões. Perdi o arpão e a faca, na ânsia de os rechaçar da água a ensanguentar-se. Usei a quilha da canoa como um taco, sem os afastar. Quando, ao tocar a costa, o que trazia era apenas a espinha do peixe, entraram-me pelos olhos, como que em visão celestial, leões na praia (não sei se dançavam…) - e, ao chegar, sem raiva, o que tinha era a gratidão pela vida no desafio, o prazer pela bravura na persistência, intocáveis.
Voltei a ver-me assim, em mar agreste, a lutar não por um peixe mas por uma bola. Levo-a aqui, intacta, lembrando-me dum poeta, o Benedetti, que após afirmar que, para si a única prova firme da existência de Deus era a Mão de Deus do Maradona, também o disse: «O estádio vazio de pessoas é o esqueleto duma multidão». E quando essa bola (que são milhões) voltar a rolar pelos estádios, na minha mão eu verei outra Mão de Deus a mostrar-me que uma bola a rolar mesmo num estádio vazio é sempre melhor que um estádio vazio sem uma bola a rolar - a bola e o estádio como esqueletos do futebol morto, buracos negros.