O treinador do treinador
Indispensável o apoio de quem nos leve a refletir sobre o nosso trabalho
FOI ultimamente divulgada uma relação profissional entre Manel Estiarte, atleta e treinador de nível mundial e olímpico da modalidade de polo aquático, com Pep Guardiola, famoso treinador de futebol do Manchester City. Conheceram-se em 1990, ainda ambos jogadores no Barcelona, embora em modalidades diferentes, e em 2008, Pep Guardiola convidou Estiarte para seu treinador do treinador. Ao longo de 15 anos, e com imenso sucesso, decorreu assim um exemplo prático ao mais alto nível competitivo da importância dos treinadores se apoiarem em quem acompanhe o seu trabalho e os leve a refletir sobre o respetivo impacto das suas ações.
Decidir bem representa sucesso. Fazê-lo mal, conduz quase sempre ao fracasso, com a agravante de só sabermos posteriormente o resultado daquilo que decidimos. No caso da decisão tomada por Pep Guardiola, fala por si o reconhecimento público constante que tem feito acerca da respetiva importância de há muitos anos ter Manel Estiarte como seu treinador do treinador.
Tal como Pep Guardiola o fez em devido tempo, os treinadores têm que tomar decisões relativamente a um sem número de situações extremamente influentes nos resultados a obter no futuro. Em termos gerais e a nível operacional, que jogadores recruta, ou dispensa, que substituições e quando, que estratégias táticas e como desenvolvê-las, que duração, conteúdo e planificação de treinos, que programa de viagens para as deslocações... Mas não só!
Também no plano comportamental e respetiva liderança, como se relaciona com os jogadores e os estimula, principalmente nas situações onde a pressão de decidir no mais curto espaço de tempo se sobrepõe a tudo o resto, é muitas vezes decisivo terem junto de si quem os ajude a refletir acerca da melhor solução. Daí a importância de possuírem um treinador do treinador.
Em termos gerais, necessita o treinador de registar dois aspetos decisivos do seu processo de tomada de decisão. Por um lado, os coletivos de trabalho raramente estão preparados para fornecer democrática e imediatamente as respostas necessárias. Mas, pelo outro, também é verdade que, enquanto no tempo, jogadores e dirigentes não forem adquirindo o hábito de participarem e contribuírem para as decisões necessárias, mais difícil se tornará ganhar a experiência para o fazerem e consigam auto responsabilizar-se na defesa da equipa.
Salvo honrosas exceções que confirmam a regra, a grande maioria dos chamados jogadores-estrelas, portugueses ou estrangeiros, denotam muitas vezes maiores preocupações consigo próprios e com o seu sucesso e imagem, que propriamente se dedicam a servir a equipa que os contrata. Vezes sem conta é possível detetar casos de jogadores habitualmente destacados pelos órgãos de comunicação social como ‘bons jogadores’ que, se a equipa ganha e eles jogam mal ficam incomodados, bem como se manifestam muito felizes com a sua atuação num determinado jogo em que de facto deram nas vistas, mas a equipa perdeu. Muitos jogadores deste tipo mostram-se extremamente diligentes nos minutos finais de jogos que a equipa já perdeu, com a preocupação exclusiva de atingirem no final desses jogos os dados estatísticos suficientes para manterem as suas posições de destaque nos rankings semanais. Impõe-se evitar, sempre que possível, esse tipo de jogadores e buscar entre aqueles que possam estar disponíveis mais para servir do que para se servirem.
Claro que todos os jogadores devem ter ambições individuais!
Um jogador sem ambição e sem projetos de carreira para a sua vida desportiva, dificilmente será útil! Como também é verdade que não ganham as equipas que não possuam individualidades capazes de nos momentos de decisão de jogos e campeonatos, chamarem a si a responsabilidade de assumirem os riscos necessários; mas é ainda mais verdade que também não ganham as equipas onde as individualidades não saibam colocar-se ao serviço dos interesses e objetivos comuns.
Quando ainda treinador, costumava dizer muitas vezes aos jogadores mais destacados: «Se souberes servir a equipa nos momentos que ela de ti precisa, nem imaginas como isso te vai ajudar a afirmar a tua individualidade no futuro próximo».
Quando os treinadores recrutam, torna-se muito importante conhecerem bem as características dos jogadores a selecionar. Acima de tudo garantindo o mais possível que entre os jogadores escolhidos não aconteçam surpresas.
Existem três aspetos muito importantes no processo de tomada de decisão dos treinadores ao contratarem jogadores. Refiro-me a serem socialmente irrepreensíveis, possuírem capacidades técnicas e táticas acima da média e terem um custo contratual compatível. Quase sempre, aqui as decisões dos treinadores são muito influenciadas pelo lado financeiro. Diria mesmo que os treinadores portugueses encontram permanentemente nos aspetos financeiros um dos grandes obstáculos para o sucesso a que aspiram.
Bons jogadores, por pouco dinheiro, já o ditado popular (embora referindo-se às galinhas!) nos confirma como é difícil consegui-lo. E aqui, ensinou-me a experiência que a opção se deva encaminhar para um determinado tipo de jogadores.
Aprendi ao longo do tempo que a razão principal porque a generalidade desses jogadores não foram mais longe nas suas carreiras a nível internacional, se relaciona com a atitude mental face ao jogo, ao treino, às suas responsabilidades socio desportivas...
Gradualmente (e com algum sucesso), passei a preferir aqueles que, embora física e tecnicamente não sejam impressionantes, mental e socialmente revelem melhores aptidões. Ao fim e ao cabo, por exemplo no basquetebol profissional português, são muitos os exemplos de jogadores estrangeiros que lideram estatísticas individuais e as suas equipas perdem mais do que seria desejável!
Permitam-me um exemplo da minha experiência. Numa determinada época desportiva (há muitos anos!), uma vez distribuído o Regulamento Interno, fui questionado pelos jogadores se poderiam contrapropor algumas alterações ao referido regulamento, pois julgavam exagerados alguns dos castigos nele propostos. Perante a minha resposta afirmativa, os jogadores promoveram várias reuniões das quais resultaram uma proposta com o que pretendiam ver alterado. Escusado será dizer que aproveitei a oportunidade para esclarecer que a existência de um regulamento interno é uma necessidade prioritária para qualquer grupo de trabalho.
Neste tipo de documento constam habitualmente as regras sob as quais deve decorrer a vida coletiva das equipas. O seu objetivo não pretende ser repressivo, mas sim pedagógico. Num grupo de jogadores responsáveis, o conteúdo de qualquer regulamento, na prática, quase nunca chega a ser aplicado. Naquele caso, era em absoluto legítimo que os jogadores contrapropusessem a sua posição sobre o assunto.
Mas que o fizessem assumindo desde logo que o que estava em causa não era prever eventuais castigos no futuro, mas sim criar condições para que a vida coletiva da equipa decorresse com uma constante participação responsável dos jogadores.
Mais importante que multar um jogador por chegar atrasado a um treino, era o facto de todos os jogadores entenderem a necessidade de chegar ao treino com a antecipação necessária que lhes permitisse concentrarem-se para as importantes tarefas de preparação nele contidas. Entre vigiar se os jogadores cumprem ou não com o horário de recolher previsto no regulamento e acreditar que todos os jogadores sabem quanto podem prejudicar a equipa caso não descansem e recuperem dos esforços constantes a que são solicitados, declaradamente preferia a segunda hipótese.
Para o melhor e para o pior, quem joga são os jogadores e não os treinadores ou os dirigentes, o que significa que de facto fazia sentido que os jogadores sentissem aquele regulamento interno como algo que lhes dizia respeito e que nele constava um modo de avaliação da sua atitude enquanto profissionais.
A proposta dos jogadores foi então entregue à Direção com o apoio dos treinadores e daí resultou um conjunto de alterações ao regulamento interno vigente.
O treinador não pode ser classificado qualitativamente pela maior ou menor abertura que permite àqueles que consigo trabalham, mas sim pela capacidade e sensibilidade que evidencia para, caso a caso, tomar as decisões que melhor sirvam os interesses do coletivo, na correspondência da sua personalidade e experiências anteriores e do tipo de grupo de trabalho onde se integra.
Entendida a liderança do treinador como a sua capacidade de influenciar o modo de atuar dos componentes da sua equipa de trabalho, tendo em vista alcançar um conjunto de objetivos bem determinados, é por demais evidente que o treinador deve liderar com o objetivo de maximizar o seu grau de influência sobre o coletivo de trabalho, através de intervenções e decisões baseadas nos conhecimentos que possua, as experiências que viveu e a sensibilidade para aceitar e compreender os que consigo trabalham.
A liderança de um treinador exerce-se em várias frentes, nomeadamente enriquecendo a capacidade de comunicação entre os componentes da equipa, encarando os que consigo competem como adversários e não como inimigos, controlando, dentro do possível, as suas reações emocionais e as dos restantes membros da equipa, fazendo sistematicamente um esforço no sentido de corrigir deficiências do seu comportamento que afetem a eficácia das suas intervenções. Sendo inquestionável que deve pertencer ao treinador a liderança das equipas, cumpre-lhe reconhecer a importância de dar oportunidade a que todos os seus componentes, dirigente e jogadores, se sintam envolvidos nas decisões a tomar, participando nelas sempre que possível.
A proposta dos jogadores atrás referida sobre alterações ao regulamento interno, é um exemplo entre muitos outros, que ilustra o alargado leque de possibilidades que se abrem ao treinador, tendo em vista o exercício de uma liderança partilhada. Com a vantagem de uma outra questão ter emergido desde logo. Através da discussão efetuada pelos jogadores, foi fácil detetar quais os jogadores que naquele grupo recentemente criado se revelavam com capacidade de liderança. Observação essa que posteriormente veio a ser fundamental para a escolha do capitão e do seu adjunto. Foram escolhidos precisamente os dois jogadores que no decurso do processo da discussão do regulamento interno se haviam mostrado mais capazes para o desempenho da tarefa de liderarem os jogadores!
O comportamento de uma equipa só será eficaz e rentável, quando todos os seus membros compreendam e aceitem de modo responsável as decisões tomadas no sentido de melhorar o seu desempenho. Tal como o grau de coesão de uma equipa, aumenta com a melhoria da perceção por todos os seus membros de quais as tarefas e responsabilidades que lhes cumprem no coletivo.
E a eficácia do treinador melhora exponencialmente quando tem consigo o treinador do treinador que o observa, questiona e dá feedback de modo continuado. Principalmente, como disse numa entrevista a psicóloga espanhola Maria Ruiz de Oña, que há muitos anos acompanha treinadores de futebol, se o investido treinador do treinador tem possibilidade de estar global e diariamente a acompanhar «a vida coletiva da equipa, no balneário, nas reuniões, nas conversações entre treinador e jogadores»...