O que realmente valemos e a importância que damos ao que dizem, lá fora, de nós

OPINIÃO27.04.202004:00

HÁ umas semanas, um jornal belga tentava explicar por que razão havia tantas mortes na Bélgica e, comparativamente, tão poucas em Portugal, e concluía que os portugueses, como tinham todos casas no campo, tinham-se isolado e viviam do que a horta lhes dava. Esta ideia de Portugal e dos portugueses, não colava, nem mesmo com a reportagem Felliniana dos dias entre 25 de Abril e 1 de Maio de 1974, feita por uma cadeia televisiva brasileira e emitida no sábado pela RTP1, mas era capaz de encaixar na lógica do artigo do New York Times acerca da Justiça portuguesa.


Há demasiada ligeireza e leviandade em muitas assunções, mas a verdade é como o azeite e vem sempre ao de cima. Veja-se, por exemplo, as cobras e lagartos que se diziam do nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), vilipendiado e usado como arma de arremesso político durante décadas e que, afinal, pede meças aos mais pintados. Cientes de que temos dos melhores e mais dedicados profissionais de saúde da galáxia, há que apostar mais e mais na formação e nos incentivos financeiros e sociais que eles justificam, e investir naquele que é dos feitos mais impactantes e que devemos agradecer ao Estado Social nascido do 25 de Abril, o SNS.


E será que o nosso sistema de Justiça é pior, ou mais vulnerável a pressões, do que o do país do New York Times, o mesmo que ilibou OJ? Francamente não creio e só esta circunstância de sermos periféricos nos leva, demasiadas vezes, a desdenhar do que é nosso e a achar que a galinha da vizinha é sempre mais gorda. Quanto a casos específicos que rolam na Justiça, reitero que sempre disse, em todas as circunstâncias, e com todos os protagonistas: o que vier a ser decidido, porque estamos num Estado de Direito que ocupa as posições mais altas no ranking mundial de defesa dos direitos humanos, deverá ser respeitado. Até lá, é folclore e, francamente, ando com muita pouca paciência para carnavais fora de época.

Ocaminho que irá conduzir-nos ao novo normal apresenta-se estreito, sinuoso e pejado de perigos. Por isso, é normal que, perante a incerteza, tenhamos medo e hesitemos nos passos a dar. Mas há que ter a consciência de que, a dado momento, parar será mesmo morrer e não haverá alternativa a meter um pé à frente do outro e fazermo-nos à estrada, recebidas as garantias possíveis das autoridades sanitárias. É neste contexto que o regresso da atividade desportiva individual está a ser, por todo o lado, gradualmente implementado e estão a ser criadas condições, num quadro de grande complexidade, para que a competição seja reatada. Pelo que vamos percebendo em países mais adiantados neste processo, há uma condição sine qua non, que é a luz verde das autoridades sanitárias, que estabelecerão parâmetros que devem ser religiosamente cumpridos. Depois, surgem uma série de questões, quiçá a mais perturbadora a que se prende com a possibilidade de, já na constância dos campeonatos, surgirem novos casos, entre os jogadores. Pelo que li, será seguido o modelo vigente para a restante sociedade, no que respeita a quarentena. E a Covid-19 será equiparada a uma lesão, um pouco como aconteceu com o Vitória de Setúbal, em janeiro…
Das coisas mais práticas, assumida que está a necessidade de se jogar à porta fechada, a que vai levantar mais celeuma é a obrigatoriedade do uso de máscara por parte dos jogadores. Limita o rendimento? Sem ser médico, creio, obviamente, que sim. Mas também limita as possibilidades de contágio; e mantém todos os intervenientes no jogo em situação de paridade. É pior, igualitariamente, para todos…


Também é possível que as equipas sejam obrigadas a estágios bastante rigorosos, desde o momento em que os jogadores e staffs são testados até que entrem em campo, ou seja, um período de 48 horas, e essa circunstância deve ser inscrita na coluna dos fatores negativos, juntando-se à porta fechada e às máscaras, nesse prato da balança.


Mas, no outro prato, há que colocar a recuperação de rendimento dos clubes através dos direitos televisivos e dos patrocinadores; a verdade desportiva na conclusão de campeonatos; e, quiçá menos palpável mas provavelmente mais importante, a possibilidade de ser dada uma injeção inestimável de normalidade a uma sociedade deprimida e assustada, que anseia por sentir-se novamente a caminho de um quotidiano próximo daquele que conhecia A. C. (antes do Covid-19).
Tudo sopesado, creio não subsistirem dúvidas da importância do regresso das várias modalidades desportivas, por mais incómodos que os modelos encontrados possam acarretar.


Há dois dias, quando saía de um jogo de hóquei no gelo em Minsk, o presidente da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, disse que não tinha visto nenhuma Covid-19 a voar e perguntou, bem disposto, aos jornalistas, se algum deles se tinha deparado com algum novo coronavírus. Creio que, para voltarmos a ter espetáculos desportivos não precisamos deste tipo de negacionismo, muito menos de alguns shots de lixívia antes de começarem os jogos. Bastará que nunca se sobreponha a vontade de fazer as coisas acontecer aos ditames das autoridades sanitárias, e da Alemanha à Inglaterra, passando por Espanha, Itália ou Portugal, é esse o espírito que tem presidido à preparação do regresso dos jogadores aos estádios e pavilhões.

Daqui a umas semanas, quando a bola começar a rolar, um dos temas em agenda será o do cumprimento de obrigações por parte dos clubes. Casos como aquele que opõe o Sporting de Braga ao Sporting a propósito de Rúben Amorim vão multiplicar-se, outros, que envolvem entidades bancárias ou mesmo a UEFA, vão emergir,  e deverá haver quem estabeleça regras claras, para os incumprimentos face às responsabilidades assumidas antes da crise. É como se não tivesse havido crise e os juros e demais penalidades manter-se-ão em vigor, ou será encontrado um modelo que flexibilize os pagamentos?
Esta matéria deverá merecer cuidada atenção de várias entidades, FIFA, UEFA, Federações Nacionais, Ligas, Sindicatos de Jogadores e Treinadores, porque daquilo que vier a ser decidido dependerá o modelo em que o futebol do futuro vai assentar.

Ofutebol joga-se para os adeptos, são eles os reis da festa e um estádio sem a emoção dos espectadores aproxima-se muito da alegria dos cemitérios. E, já o defendi neste espaço, quando houver vacina e voltarmos ao normal, é obrigação dos clubes implementarem políticas de preços baixos, que encham as bancadas e revitalizem a indústria do futebol. Dito isto, não fazem sentido nenhum, nessa fase, os protestos das associações de adeptos perante os jogos à porta fechada. É isso ou nada