O que nós andámos para aqui chegar...
No início, o futebol era apenas um jogo lúdico, nascido para prazer de gente rica que tinha o privilégio de gozar tempos de lazer. Nos finais do século XIX, enquanto a monarquia agonizava e a República se prometia em Portugal, já fazia parte dos sports modernos das classes abastadas e dos mais próximos da família real.
Anos mais tarde, já com a República instalada, o futebol democratizou-se, tornando-se num dos poucos prazeres do povo. Os clubes foram, então, imitando formas e modelos de partidos e não tardou a que cada resultado de um jogo ganhasse uma importância maior do que a vitória desportiva e cada campeonato se tornasse, mais do que um objetivo de equipa ou do clube, uma manifestação de poder social de grupo.
Quando o futebol atingiu uma dimensão nacional inimaginável, aí pela segunda metade do século XX, Lisboa não era apenas a capital do país, era o centro. O resto do país, como algumas elites diziam, era, apenas, paisagem.
Natural que o futebol do trio BSB (Benfica, Sporting e Belenenses) dominasse. Natural que a presidência da Federação Portuguesa de Futebol apenas fosse partilhada por adeptos deste trio. A 300 quilómetros de distância de um país socialmente desigual e politicamente perverso, o FC Porto ainda não conseguia traduzir a raiva e o sentimento de injustiça que o moldaram no caráter e na personalidade num movimento de revolta e de conquista de poder.
Se olharmos com olhos de ver a História do futebol português, descobrimos a realidade do país e, com ela, as mesmas virtudes e os mesmos defeitos da geografia humana da nação portuguesa.
Mais do que na gente povo (os adeptos) o futebol nacional foi evoluindo numa luta constante de poderes. Uma luta feita de pouca frontalidade e de muitos jogos de bastidores. Tal e qual o que o futebol aprendia na política e na sociedade de influência urbana.
Deu no que deu. Depois das hegemonias cíclicas, com maior ou menor influência política no tempo da ditadura, os poderes unipessoais de novos presidentes-reis, cada um deles com a sua parte importante de populismo, cada um deles com a convicção clara de que o futebol não só não seria um jogo para ingénuos, como seria, mesmo, um terreno propício aos devaneios absolutistas do ser humano.
Criou-se, assim, a ideia de que só se dominava o futebol em Portugal, se se dominasse o sistema. E o que se tornaria claro é que o futebol, por não ser devidamente escrutinado pelo sistema judicial, garantia imunidade a quem se atrevesse a subverter princípios essenciais à verdade da competição desportiva.
Não houve, assim, mistério, nem surpresa, quando o futebol português desaguou nesse pântano de águas podres que foi deixado à vista pelo ‘Apito Dourado’. Falava-se, então, das páginas mais tristes e mais negras do nosso futebol, mas a verdade é que apenas foram páginas inevitáveis de uma longa história de permissividade do regime e de incompetente tolerância da justiça. E o facto do ‘Apito Dourado’ se ter transformado, como se transformou, numa amarga anedota jurídica, que o povo, aliás, aproveitou para satirizar e gozar, incentivou todos os que habitavam os corredores do poder do futebol a acorrerem à vacina contra a ingenuidade e a procurarem numa geração de talentos inconfessáveis e de hábitos promíscuos, os manipuladores que reinaram sobre tudo e todas as coisas no nosso futebol de clubes.
Perante o que se conhece hoje, o impacto de notícias alarmantes, pergunta-se: então o que mudou? Só uma resposta possível: felizmente, mudou o país!