O privilégio

OPINIÃO30.12.202205:30

A grandeza e impacto do Benfica, lembrando também a grandeza de António Mega Ferreira

RUI COSTA vai acabar 2022 tendo vivido o primeiro ano completo como presidente do Benfica, julgo que, sem dúvida para alguém, a maior instituição desportiva do País, a de maior base de apoio popular, e, sobretudo por isso, a de maior impacto social, maior orçamento financeiro, melhores recursos e maior rentabilidade económica, mas também a que move mais e maiores montanhas, mais e mais profundas euforias e mais e maiores depressões. 

Por isso, ou melhor, também por isso, A BOLA acaba de nomear o presidente benfiquista ‘Homem do Ano’ de 2022, não, evidentemente, por ter ganho alguma coisa no futebol - ganhou em algumas modalidades, que têm sempre, no nosso pequeno País, infelizmente para os seus praticantes e promotores, menor expressão -, não por ter somado mais pontos, saltado mais metros, corrido em menos segundos ou conquistado mais taças, não pelas estatísticas ou simplesmente pelos resultados, mas pelo impacto, sobretudo pelo impacto, pela coragem, pela determinação, pela ousadia, pelo desafio, de se ter atirado para a liderança do maior dos porta aviões desportivos nacionais, quando será ainda visto por parte da mais influente sociedade portuguesa como apenas um antigo jogador de futebol.

Foi por isso, sobretudo por isso, e ainda pelas mudanças que está a impor no maior clube português, pelo atrevimento (sempre muito discreto) de arriscar decisões de que muitos ‘especialistas da especialidade’ tanto desconfiaram e contestaram, que A BOLA nomeou Rui Manuel César Costa ‘Homem do Ano’ de 2022.
É, em todo o caso, uma decisão da exclusiva responsabilidade da Direção e Chefia do jornal A BOLA. Não é votada pelos leitores, nem resulta de classificações ou títulos, como muitos julgam ter, forçosamente, de suceder. Nada disso. Foi uma escolha consciente, porque no mundo do desporto não se destaca apenas quem ganha, porque apenas ganha um e muitos fazem bem o trabalho.

Ganhar não é tudo, apesar de vivermos numa sociedade cada vez mais redutora na qualificação dos que vencem e dos que perdem, sendo uns os bestiais e todos os outros as bestas.

Não confundamos as coisas. A BOLA não escolheu Rui Costa por vassalagem, a ele ou à instituição a que preside. A BOLA escolheu Rui Costa por lhe reconhecer o monstruoso impacto da sua liderança, apesar do privilégio de ser presidente do Benfica, bem como a dimensão dos desafios que enfrenta como homem outrora olhado, admirado e elogiado quase só pela qualidade do imenso talento que teve para jogar futebol - apesar de todo o amor que se sempre manifestou pelo clube que o projetou -, ou julgado, criticado, es escrutinado e visto com um misto de desconfiança e descrença, pelo mpapel de diretor desportivo ou administrador que foi desempenhando em todos estes anos após ter deixado os relvados.

Achará o leitor, porventura, pouco ter o futebol português visto Rui Costa tornar-se o primeiro ex-jogador profissional a chegar à presidência de um clube com a grandeza, a história e, lá está, o impacto social, desportivo e cultural do Benfica? Achará o leitor de somenos que este homem de 50 anos, assumindo este gigantesco desafio num dos mais difíceis momentos (talvez o segundo mais difícil) da centenária vida da instituição encarnada, tenha conseguido, realmente contra muitos ventos e muitas marés, ganhar, como ganhou, o respeito e a confiança da base de apoio da maior instituição desportiva do País?
Admito, evidentemente, que é, como escrevia Vítor Serpa no editorial de ontem deste jornal, uma escolha polémica, como qualquer escolha, porque a decisão, tomada por um conjunto de jornalistas de A BOLA, é uma decisão interna e não uma decisão posta à discussão pública.

Não é uma decisão que procure consensos, unanimidades, reconhecimento. Nada disso. É a decisão e a escolha de A BOLA. Apenas isso, e deve, como tal, ser absolutamente respeitada como qualquer escolha, mais ou menos polémica, mais ou menos controversa, mais um menos geradora de diferentes opiniões, como é normal e saudável, até, que aconteça.

É uma decisão livre e em liberdade. E não uma decisão refém de interesses, lóbis, influências, poderes ou fantasmas, mesquinhos e impróprios, que tanto mal fazem ao futebol, ao desporto, e à nossa vida em geral.
Não se trata de justificar a opção de A BOLA, tão discutível, reafirmo, como qualquer outra. Mesmo nas votações (como é o caso das eleições de Bolas de Ouro ou outras distinções) há discussão, quanto mais numa decisão sem um grande universo de escrutínio.

Trata-se, sim, de levar o leitor, afinal quem merece, a compreender uma escolha da qual pode e deve discordar se o entender, mas não pode, nem deve, questionar relativamente ao espírito, ética e integridade da decisão. Apenas isso.

MORREU, esta semana, António Mega Ferreira. Presto a minha sentida homenagem a um dos maiores jogadores da vida que conheci, um verdadeiro número 10, na linguagem do futebol que ele, como grande intelectual que era, também sabia amar.

Tive o privilégio de conhecer António Mega Ferreira nos primeiros anos da década de 90. Privilégio porque, na realidade, é enorme o privilégio de conhecer alguém como António Mega Ferreira, tão duro, confiante e ao mesmo tempo tão doce na palavra, que prendia a atenção de qualquer um que compreendesse a dimensão do conhecimento, experiência, pensamento e humanidade de um homem como ele era. Costuma dizer-se dos que morrem geralmente coisas boas, para não sermos acusados de falta de bondade e, também, porventura, para exorcizarmos as imperfeições da nossa própria consciência.

Mas de António Mega Ferreira não se trata, no que me diz respeito, de dizer coisas boas por ter deixado o mundo dos vivos. Trata-se, no caso, confesso com humildade, de reconhecer a importância e o impacto que teve na minha vida como cidadão, apaixonado e jornalista.

Entre esses primeiros anos da década de 90 (bons anos de trabalho, experiências e relações) e o final da primeira década deste século, a vida, sobretudo profissional, afastou-me da possibilidade de conviver um pouco mais com este homem de notável expressão no amplo campo cultural onde se incluem o jornalismo, as letras, as artes, a própria política, ainda o desporto e em particular o futebol.

A verdade é que, no velho e belo bairro de Campo de Ourique, que ele, e eu, tanto acarinhávamos, pude, anos depois de o ter conhecido, reaver o privilégio de conversar de novo com António Mega Ferreira, em tantos e tantos ocasionais encontros, sobretudo ao almoço ou ao jantar, ele sempre com aquele ar aparentemente rude e maioritariamente sisudo de quem desconfia sempre da banalização dos sentidos, eu com a humilde, mas firme determinação de não perder um segundo da invulgar, e cada vez mais rara, oratória de exemplar contador de histórias como ele era, mas sobretudo de não desperdiçar a mais ínfima parte da inigualável partilha de experiências que sempre António Mega Ferreira me proporcionava, a mim e a todos os que nos rodeassem, com a generosidade dos intelectualmente superiores, e a bondade dos que, ao longo da vida, procuram, acima de tudo, para si próprios e em especial para os outros, tornar-se bons seres humanos.
Era, no fim, o que sobressaía deste homem culto, inteligente, empreendedor, inovador, criativo, empenhado, interessado e conhecedor, que deixa, felizmente, legado à dimensão do que verdadeiramente foi e do que verdadeiramente fez. Tornou-se um bom ser humano, talvez já depois de se ter tornado uma grande figura do País.

António Mega Ferreira, pelo que sempre me pareceu, fez-se boa pessoa pelo trabalho de uma vida, porque fazermo-nos boas pessoas dá realmente muito trabalho, mas dá, sobretudo, preocupação permanente e desafio constante; exige empenho, reflexão, serenidade, luta, exige tolerância e compreensão, exige muita conversa, muita discussão, muitas experimentações e muito olhar ao espelho, e deve ter sido isso que António Mega Ferreira andou a fazer, ao longo de décadas, para voltar a parecer-me, em todos os momentos vividos e conversados no belo e velho bairro de Campo de Ourique, uma boa pessoa.

Creio que apenas chegam verdadeiramente a tocar os outros com essa bondade os que conseguem reconhecer todas as imperfeições pessoais e os defeitos próprios de personalidade, e os sublimam, com a devida integridade, até um dia poderem, por fim, orgulhar-se de terem dado verdadeiro sentido à vida em comunidade.

António Mega Ferreira era um homem justamente reconhecido, e não sei, sinceramente, se tão reconhecido como mereceu, mas sei que era tão simples, tão simples, que só podia mesmo ser um homem bom. E era, pelo menos aos meus olhos, um homem bom. Curvo-me perante essa memória. À memória dele e a tudo o que ele, a partir dela, deixou criado na minha memória.

Obrigado, António.