O órfão e o VAR
A história contou-a Eduardo Galeano no seu Futebol: Sol e Sombra: que ,regressando do exílio ao Equador, Jorge Enrique Adoum (o escritor de Entre Marx y Una Mujer Desnuda) logo se atirou a «ritual obrigatório»: ir ver o Aucas. Ao entrar no estádio, apanhou-o fervilhante como sempre - e, de repente, cobriram-se as bancadas de silêncio. Com espectadores de pé e caras amarradas foi-se roçagando voz entaramelada a elogiar o árbitro por estar ali «cumprindo o seu dever na mais triste das circunstâncias». Com ele acabrunhado e de lágrima furtiva, Adoum murmurou:
- Como as coisas mudaram. Antes as pessoas só queriam saber dos árbitros para lhes chamar filhos da put#!
Ao quarto de hora, golo do Aucas pôs o estádio em frenesim mas ao ver-se que o árbitro o anulara, soltou-se, de pronto, da multidão (já em sanha) o uivo:
- Órfão de put#... órfão de uma put#!
Era, pois, a expressão daquilo que o próprio Galeano já descobrira, poético:
- No futebol, o fanático é o adepto no manicómio.
Não, infelizmente não é só o adepto que é assim. Por isso, a história de Galeano e Adoum saltou-me à ideia ao ouvir o Dr. Varandas (e não só) em Famalicão (e depois). E no bramido também me lembrei de o ter escutado a Pierluigi Collina:
- O futebol não é um desporto perfeito por isso não podemos pretender que o árbitro o seja.
É, é verdade. Mas ainda mais verdade é que um árbitro é sempre mais imperfeito do que podia ser se não aproveitar bem o que tem agora em seu poder: o VAR. Ao anular o golo a Coates, Luís Godinho tirou à análise do primeiro olhar a imperfeição que dificilmente poderia ver sem o VAR - e o móbil da reação descabelada que se lhe seguiu deu-a Anton Tchekov (que sabendo pouco de futebol sabia muito da vida e do ser) ao dizê-lo:
- Errar é humano mas ainda mais humano é atribuir o erro aos outros...
(Pior, porém, são os queixumes e as birras que se arrastam no clamor do «erro» - quando só em ilusão ele o é...)