O muito especial caso do FC Porto
MAGNÍFICO artigo de opinião de António Oliveira em A BOLA de ontem. Lúcido, rigoroso, esclarecedor. Comecemos pela qualificação mais comum que temos ouvido sobre esse artigo e que tanto impacto teve: Grande coragem! E começamos, então, por aqui, até porque o conceito revela muito mais do que parece na sua só aparente simplicidade. Ao se admitir que é precisa muita coragem para se ter uma simples opinião sobre um clube, com maior ou menor razoabilidade do argumento, isso assinala, por si só, um estranho e até absurdo estado que faz com que em Portugal, no ano da Graça de 2020, em pleno século XXI, se entenda que só se pode afirmar uma opinião dissonante sobre o regime portista, se se tiver «muita coragem». E a pergunta óbvia que se deverá fazer é: que raio de empresa, entidade, clube, instituição ou, mesmo, país pode ambicionar desenvolver-se, crescer, modernizar-se, acompanhar a natural evolução dos tempos se até para assumir uma simples opinião discordante é preciso ter-se coragem? A última situação idêntica de que me lembro em Portugal foi quando a propaganda do Estado salazarista mandou dizer que a «Pátria não se discute». E foi o que se viu!
O artigo de António Oliveira veio na sequência das declarações de Sérgio Conceição recebidas no hemisfério norte como se se tratasse de um ataque nuclear. Pode-se questionar o modo, o tempo e o lugar, mas não se pode questionar a muito entendível razão do treinador queixoso, nem se pode questionar o sentimento de defesa do FC Porto, através de uma ideia base que assinala e acusa a existência de um corpo interno, no clube, que bloqueia, subverte, desvirtua a regra da unidade e do espírito de equipa. E não menos eloquente foi a forma pouco discreta como acabou por ser decretada a proibição do treinador voltar a falar no assunto, exigindo-lhe que obedecesse à ordem unida, antes do mais, na sua qualidade de funcionário.
HÁ, porém, dois aspetos que, tal como o sol, o velho regime da administração portista não conseguirá tapar com uma peneira. O primeiro diz respeito ao estado de perigoso deslizamento da equipa principal de futebol para patamares muito mais baixos e de qualidade geral preocupante; o segundo diz respeito à discussão sobre o mais elementar dos problemas do FC Porto: a sucessão natural de Pinto da Costa e, mais do que isso, a sucessão de todo o seu consulado. Curiosamente, uma e outra matéria têm sido assuntos tabu, que não podem nem devem ser falados. Coisa que, felizmente, portistas de espinha direita e da estirpe de Miguel Sousa Tavares ou António Oliveira, e poucos mais, felizmente, têm ignorado.
Dos dois aspetos assinalados, o primeiro decorre daquele que foram os desajustados, para usarmos uma qualificação simpática, atos de gestão da administração da SAD portista e que levou à penalizadora situação de cumprimento obrigatório de um fair play financeiro, a que se juntou, depois, uma ineficiência confrangedora, a revelar uma total inadaptação à situação de crise, mas que, para os administradores, não teve outra consequência que não fosse um ainda mais generoso pagamento dos seus atos e decisões. Sendo que o elevado sentido de profissionalismo e a manifesta competência de Sérgio Conceição tivessem conseguido disfarçar, na raça e na imposição de uma cultura guerreira aos seus jogadores, o valor manifestamente em falta e a qualidade perdida.
O segundo aspeto, o da sucessão natural de Pinto da Costa, será, para a esmagadora maioria dos portistas, o mais melindroso e, também por isso, o mais silenciado. Os saxónicos nunca teriam qualquer problema em falar de factos e de os apreciar, além e aquém da condição humana. Os latinos confundem o pragmatismo necessário ao crescimento de uma instituição com a moral e o sentimento humano. Os portugueses ainda fazem pior: são persistentes no endeusamento daqueles que, depois de mortos, rapidamente esquecem.
Sejamos realistas. No atual estado do FC Porto, e atendendo a que entre as virtudes presidenciais de Pinto da Costa está a sua inteligência, não duvido que ele próprio já se tenha questionado sobre a sua sucessão e tenha pensado que na melhor das soluções não está a sua eternização no poder, até à morte. Se Pinto da Costa prolonga, hoje, esta agonia do regime, é por outras razões, uma delas, eventualmente, a de querer ser leal aos seus velhos e fieis bispos, os quais, sem a figura do Papa, sabem que não mais terão assento nas salas de poder do Vaticano.
Seja como for, se a sucessão de Pinto da Costa (e ele próprio sabe disso) acontecer de forma drástica, inevitável, abrupta, pode ser o caos. E esse deve ser o problema que mais deve preocupar todos aqueles que verdadeiramente amam o FC Porto.
Bem sei que há líderes que se eternizam na convicção egoísta de que depois de mim virá o dilúvio e isso fará de mim um ídolo mais apreciado e mais amado. Não posso especular que seja esse o motivo. Acho, isso sim, que Pinto da Costa não deseja quaisquer cargos honoríficos, nem reformas douradas. Talvez, ao longo de tantos e tantos anos, se tenha viciado no poder e de poder. Talvez entenda que a sua missão o deve obrigar a ser presidente até à morte e que, também no que respeita à presidência do FC Porto, deve deixar o assunto nas mãos de Deus.
ALÉM das mãos de Deus há, porém, que admitir, numa perspetiva mais terrena, que também deverão estar metidas as mãos dos Superdragões. A mais forte e mais influente claque do FC Porto não deixará de entrar na discussão e de chamar, a si, direitos sucessórios. Em que medida e com que força, a seu tempo se verá, mas é de admitir que seja uma exigência crucial. Por enquanto, os superdragões gerem a crise entre uma compreensiva tolerância para com a administração e sinais de óbvia impaciência para com Sérgio Conceição, que será o sacrificado final, se as coisas continuarem a dar para o torto. E aqui há que dizer que o próximo jogo com o Benfica poderá, realmente, ser decisivo. Para o FC Porto, claro, mas também e, muito especialmente, para o seu enérgico treinador.