O (mau) ar da lufada

O (mau) ar da lufada

OPINIÃO29.03.202306:30

Aquilo que Cristiano Ronaldo viu (como deus a descer à terra e à lama) não foi o que Bruno Fernandes viu (e eu também não...)

ACHANDO estranho que Cristiano Ronaldo tenha descoberto o que descobriu ao cabo de dois treinos, antes dos 4-0 de Portugal ao Liechtenstein:
— Há um ambiente muito positivo, muito bom na seleção… Os jogadores estão felizes… Sentimos uma energia boa e positiva… É uma lufada de ar fresco…
percebi muito melhor o sentido  da exclamação solta da lucidez (e não só...) de Bruno Fernandes, depois dos 6-0 no Luxemburgo:

— … é simplesmente um treinador novo, com ideias novas. Não há lufada de ar fresco nenhuma. Nunca houve nada que não fosse fresco de ar, por isso acho que simplesmente são novas dinâmicas, um novo treinador e há que assimilar as ideias dele!

Não conseguindo, pois, ser capaz de descobrir o que Cristiano Ronaldo descobriu ao cabo de dois treinos (ou se calhar menos…) em Roberto Martínez, antes dos 4-0 ao Liechtenstein, mas  percebendo bem o sentido da exclamação solta da lucidez (e não só...) de Bruno Fernandes, depois dos 6-0 no Luxemburgo - não deixei, no entanto, de ver desde logo, entre um jogo e o outro (apesar de um mais conseguido que o outro), uma boa ideia de José Maria Pedroto no Roberto Martínez:  

— A ideia de jogo não nasce de um passe de mágica, constrói-se e implementa-se, tendo sempre presente dois aspetos: o que nós pretendemos e as características dos jogadores. Podemos ter uma ideia de jogo bem definida, podemos até ter jogadores que a saibam interpretar, mas para que os resultados sejam aqueles que pretendemos, há um fator em que não podemos errar: saber como  vamos dispor a equipa face ao adversário.

Mesmo com um jogo mais conseguido que o outro, foi claro (para mim) que tendo Roberto Martínez essa boa ideia de jogo para ambos os jogos, ele escolheu igualmente bem os jogadores para a(s) interpretar - sem errar no modo como dispôs a equipa ao adversário (mesmo que contra o Liechtenstein pudesse ter defesa diferente da defesa a três). E vendo o que vi - não vi nisso qualquer lufada de ar fresco (por que isso quase sempre vi em Fernando Santos). Mas ainda vi mais no Roberto Martínez, entre um jogo e o outro (apesar de um mais conseguido que o outro) - vi por exemplo a ideia de Arrigo Sacchi (usada na sagaz metáfora do que deve ter-se na equipa para ela jogar um futebol melhor, mesmo não sendo um futebol mais belo…):

— Miguel Ângelo pintava com a mente, não pintava com as mãos. Por isso é que eu exijo sempre jogadores inteligentes na minha equipa…

Sim, em nenhum dos jogadores  que ele escolheu (bem) para ambos os desafios vi falhas nesse ponto. Mas também não foi no modo como eles se deram às novas dinâmicas que eu vi lufadas de ar fresco (porque já era isso que eu via com Fernando Santos: a esperteza estava lá, estava neles, nos jogadores - e o treinador só precisava de não atrapalhar, não os atrapalhar). E, vendo o que vi, lembrei-me de Marcelo Bielsa - a descobri-lo no seu jeito sempre filosófico de jogar futebol com as palavras:

— Quem ganha não deve preocupar-se em ir à procura das razões, que há de haver sempre alguém a inventar teorias para o justificar…

Se, ganhando o que ganhou (e ninguém ganhou mais por Portugal) Fernando Santos não precisa de se preocupar em ir à procura de tais razões - com a sua «lufada de ar fresco», Cristiano Ronaldo não precisaria (como o deus que é a descer à terra e à lama...) de ir à procura de descortesia (ou pior...) para embrulhar o remoque rasteirinho que Fernando Santos não merece - mesmo que, algumas vezes, o seu futebol (não perdendo) se pudesse pôr dentro de um olhar de Javier Marías:

— Não há nada que me angustie mais que um futebol angustioso…

porque, mesmo quando, a sua equipa fazia encasmurradas exibições (e não foram tantas assim), esse futebol angustiado e angustiante não se devia à burrice (ou à falta de bom ar) do treinador. Não, não se devia a Fernando Santos ser incapaz de tirar a equipa de trevas, escorralhas ou becos que sem saída ou ser incapaz de a deixar resvalar facilmente para o disparate ou o desleixo.

Ou seja, o que vi em Roberto Martínez foi o que Bruno Fernandes viu: que, ao seu jeito diferente, ele até pode fazer melhor que Fernando Santos - não por rufias questões aéreas mas por ter o que Fernando Santos nem sempre teve assim: equipa fantástica, tão fantástica que se pode dar ao luxo de deixar fora de si  (por circunstâncias várias, durante todo o tempo ou só algum) jogadores como Diogo Costa, Pepe, Pedro Gonçalves, Florentino, William, Mário Rui, António Silva, Inácio, Dalot, Cancelo, Nuno Mendes, Guerreiro, Gonçalo Ramos, Otávio, João Mário, Vitinha, Rafael Leão, Diogo Jota, Rúben Neves, Matheus Nunes… (tanta classe  - e ainda falta Rafa pelo que se sabe...)