O hino

OPINIÃO10.05.201904:00

JÁ lá vai o tempo em que muitas equipas inglesas eram gozadas sempre que vinham jogar ao continente. Na última década e meia, sobretudo, as equipas inglesas ganharam nova dimensão e, tendo felizmente mantido intactas cultura e espírito, tornaram-se muito mais fortes e competitivas e já não pode admirar que nas finais das duas competições europeias deste ano estejam, extraordinariamente, quatro equipas inglesas, bem a prova de que compensa ter a melhor liga do mundo e o futebol realmente mais autêntico, competitivo e ético de todos os que se jogam por esse planeta fora.  

Na Liga dos Campeões, é verdade que foram as meias-finais que foram, inesquecíveis, surpreendentes, esmagadoras, arrepiantes, frenéticas, espetaculares, emocionantes, mas a verdade é que foram também os quartos de final que foram (inesquecíveis os confrontos em Manchester e Turim, por exemplo), e foram também os oitavos de final que foram (com o brilhante hat trick do nosso Ronaldo ou a tremenda goleada do Ajax no campo do Real Madrid), e tudo somado, talvez estejamos na verdade perante a melhor edição de sempre da Champions.

Na realidade, tão depressa não deixaremos de falar do que foram estas meias-finais da Champions, pelo menos até 1 de junho, quando os sensacionais Liverpool e Tottenham se encontrarem em Madrid para a segunda final entre equipas inglesas na história da competição, e decidirem qual sucede ao Real Madrid e será o novo campeão europeu.

Foi uma semana absolutamente fantástica para o futebol, mágica para os vencedores e cruel para os derrotados. Mas é isto o futebol, como tão bem assinalava A BOLA na primeira página da edição de ontem. E quando julgávamos ter visto tudo na noite de terça-feira, em Anfield, eis que outra equipa inglesa consegue a verdadeira proeza de eliminar o sensacional Ajax depois de se ver a perder por 2-0 ao intervalo do jogo em Amesterdão.

Foram dois dias extenuantes só de ver, dois jogos inesquecíveis, momentos de futebol verdadeiramente espetaculares nesta fantástica Liga dos Campeões.

Não chegam os adjetivos para elogiar Liverpool e Tottenham, os novos finalistas da mais importante prova de clubes, a confirmarem como cada vez mais há o futebol... e há o futebol inglês!, no sentido em que a Premier League é também cada vez mais um caso à parte no espetáculo que é o futebol, mas também na organização, na paixão, na emoção, na organização, no fair play e na ética, no espírito e na cultura.

Na verdade, o que foram fazendo jogadores e treinadores estrangeiros chegados à Premier League foi darem mais qualidade às equipas inglesas, mas não lhes alteraram a cultura nem o espírito, bem pelo contrário, tornaram-se também esses jogadores e treinadores estrangeiros melhores por competirem segundo o espírito e a cultura dos clubes e dos adeptos ingleses.

Por alguma razão quem tem genuína paixão pelo futebol não pode deixar de ter alguma paixão, ou, no mínimo, admiração por um clube como o Liverpool, por exemplo, exatamente pelo espírito e pela cultura dos reds, que faz com que os mesmos adeptos que arrepiaram a Europa na noite de terça-feira por terem vencido por 4-0 e eliminado o Barcelona sejam capazes de fazer o mesmo na noite em que o Liverpool for derrotado por 0-4 e perder um sonho semelhante.

No Liverpool, ninguém caminha sozinho, como cantam os adeptos, e vale a pena lembrar como é inquebrável o espírito («You’ll Never Walk Alone») do hino do clube, mais uma vez cantado de forma absolutamente arrepiante na noite de terça-feira, num estádio que tem tanto de velhinho como de carismático, tanto de enferrujado como de icónico, contagiante e escaldante.

Quando passares por uma tempestade
mantém a cabeça erguida
e não tenhas medo do escuro

No final da tempestade
o céu será dourado
e doce o som de prata da cotovia

Anda pelo vento
anda pela chuva
e embora os teus sonhos
sejam jogados e queimados

Caminha, caminha
com esperança no coração
e nunca caminharás sozinho

Nunca caminharás sozinho

Caminha, caminha
com esperança no coração
e nunca caminharás sozinho

Nunca caminharás sozinho!

Enquanto isso, em Barcelona procuram-se culpados e exige-se que rolem cabeças. Não admira. Está no sangue dos latinos ferver com o insucesso, e o Barcelona, que mesmo com Lionel Messi há quatro épocas não vê a final da Champions, foi agora incrivelmente esmagado depois de ter ganho por 3-0 em Camp Nou, como já tinha sido esmagado a época passada, mais ou menos da mesma incrível maneira, quando, nos quartos de final, e depois de vencer a Roma, em casa, por 4-1, se viu derrotado (e eliminado) em Roma, inapelavelmente, por 3-0!!!

Na épica noite de Anfield, ficou a ideia de um confronto da sobranceria do Barcelona com o caráter do Liverpool, do complexo de superioridade da equipa espanhola com a coragem da equipa inglesa, da arrogância de uns com a bravura, humildade e determinação de outros.

É uma daquelas vitórias que perdurará, certamente, pelo tempo. E que enche o futebol de beleza, emoção, magia e vida.

E é também, ao mesmo tempo, uma derrota histórica.

Pelo choque! E, sobretudo, pelo choque que terá representado para os adeptos do Barcelona o modo inacreditável e certamente inédito ao mais alto nível como o Liverpool chegou àquele quarto golo, tão difícil de justificar como de perdoar a uma equipa com a experiência, o talento, o poder e a responsabilidade do Barcelona.

Não tem desculpa. E dói.

Não mais do que a derrota, evidentemente.

Mas dói. E acredito que doa muito!

VALDANO não foi só um craque do futebol, campeão do mundo em 1986 pela Argentina, ao lado de Maradona; tornou-se também um treinador de sucesso, e nos últimos anos dedicou-se, muito especialmente, a pensar e a escrever sobre futebol, o que já lhe valeu ficar conhecido como ‘o filósofo’.

Argentino de alma e coração e espanhol por adoção, Valdano chegou a Espanha em 1975, para jogar no Deportivo Alavés, e nunca mais voltou para casa. Vestiu depois a camisola do Saragoça e, por fim, do Real Madrid, onde jogou até 1987, quando, aos 31 anos, uma hepatite B o obrigou a terminar a carreira.

Valdano, sempre muito crítico da organização e das estruturas do futebol do seu país, escreveu um dia que nalguns clubes argentinos as claques cobram percentagem dos salários dos jogadores sob pena de os impedirem de jogar no respetivo clube. Um autêntico drama contra o qual os clubes argentinos têm certamente vindo a lutar sobretudo ao longo das duas últimas décadas mas que tem todo o ar de não estar ainda erradicado.

Por cá, devemos esperar todos nunca viver no futebol português essas verdadeiras sul-americanices que tantas tragédias, infortúnios e violência têm causado do outro lado do oceano.

Mas é bom que não se permita que alguns eventuais focos desses ares sul-americanos, como os que pareceram, por exemplo, respirar-se no FC Porto nas últimas duas semanas (muito em particular após o último jogo da equipa, no Dragão) possam transformar-se em algo mais incontrolável e, sobretudo, mais grave.

O futebol é dos adeptos e para os adeptos. E serão sempre os adeptos o mais importante do futebol.

Não podem é ser os adeptos a dar as ordens.

Isso nunca!

PODE já não ter Jonas a capacidade de jogar e fazer golos como nos três anos em que foi campeão pelo Benfica, melhor marcador e melhor jogador do nosso campeonato. Mas o que Jonas não perde realmente é a classe, nem um pingo do caráter ou um traço da competitividade que fizeram dele um jogador-modelo na Liga portuguesa.

O que Jonas foi capaz de fazer na última jornada, quando entrou na 2.ª parte do jogo com o Portimonense, na Luz, é bem o exemplo de como um jogador que tem hoje dificuldades físicas porventura insuperáveis consegue ainda, aos 35 anos, mostrar a generosidade, a determinação e a ambição de um jovem de 20. Jonas é um jogador verdadeiramente excecional, e foi, mais uma vez, decisivo para a equipa do Benfica, que estava à beira do precipício e acabou no cimo da montanha.

Pelo menos no último sábado.