O deus dos pequenos países
HÁ muito boa gente que gosta, a sério, de futebol e que está profundamente preocupada com o rumo de ganância e paixão pelo lucro fácil, que o futebol está a percorrer. De facto, o povo, essa gente imensa e anónima que sustentava a alegria e a paixão do jogo, está a ser banido dos estádios, dos camarotes VIP, enfim, do futebol, que passa a ser, no essencial, um agradável pretexto para negociatas maiores, uma luxuosa antecâmara dos bastidores do império financeiro mundial.
Resta, para o povo, o futebol televisivo, o futebol de linhas que assinalam offsides pela diferença de dois centímetros de bota, que protege cientificamente os batoteiros que saibam representar faltas imaginárias, provocadas pelo simples contacto normal e natural do jogo, que a todos ilude naquelas estúpidas discussões inúteis de televisões em desespero por audiências de qualquer género. Resta o futebol aritmético e linear, o futebol chato da geografia do campo, da matemática da estatística, do tempo de posse de bola que se anula, quase sempre, pela importância maior do resultado.
Com a criação antidesportiva e antiética de um campeonato europeu das elites, os ricos não só se limitarão a jogar entre si, como colocarão à porta das suas competições um enorme letreiro: «RESERVADO O DIREITO DE ADMISSÃO. NESTE ESTÁDIO NÃO PODEM ENTRAR NEM CÃES, NEM GATOS, NEM POVO.»
Sim, não havia esperanças justificadas. A UEFA capitulou como se esperava. Já não importa o desenvolvimento sustentado do futebol, importa a salvaguarda da riqueza do império que, mais tarde ou mais cedo, tal como nos ensina a História, cairá com estrondo e surpresa dos seus criadores.
Talvez, então, o futebol esteja pronto a recomeçar e se salve pela sua natureza popular, que continuará a luta pela sobrevivência de um jogo universal, tão complexo de tão simples; tão entusiasmante, de tão imprevisível.
Neste preciso momento, véspera do dia em que Portugal e Holanda se defrontarão numa final europeia de futebol, vale a pena pensar um pouco e admitir que se nas seleções vivêssemos a desmedida ambição do lucro que se vive nos clubes, nunca seria possível termos chegado a esta final, com estes finalistas.
É curioso. Parece haver um deus dos pequenos países que faz questão de nos explicar que, no futebol, o tamanho não conta. Nem sequer a riqueza. Conta o talento, conta a paixão, conta a criatividade, conta a esperteza que o pequeno sempre terá de ter para sobreviver no mesmo mundo dos gigantes.
Portugal e Holanda são o exemplo da existência do deus dos pequenos países. São, ambos, inimitáveis. Têm uma escola rica de saberes e uma grandeza própria do conhecimento que continua a ser, para mal dos gananciosos, a maior riqueza que um homem pode ter.
Por isso, o império do futebol de oiro estará para todo o sempre ameaçado pela sua própria condição humana. É nestes tempos de injustiça, de terra sem lei divina, de deserto dos princípios e dos valores, que o homem inteiro e único se ressuscita nas inquietações, se regressa nas ameaças, se afirma nas convicções.
Portugal e Holanda são dois heroicos resistentes. Afirmam a grandeza dos pequenos. Revelam a inteligência dos que sabem que só podem alcançar o que pretendem se lutarem pelas suas conquistas, porque nunca terão dinheiro, como outros, para as comprar feitas.
Ainda bem que Portugal e Holanda chegam a esta final. Ainda bem que pequenos e médios clubes continuam a surpreender os grandes e a fazer do futebol um jogo imprevisível. São sinais de vitalidade e de esperança no futuro do jogo universal.