O desassossego da incoerência

OPINIÃO16.04.201901:10

1 - Vi os jogos do Benfica na Liga Europa e contra o Vitória de Setúbal fora do país. Por esse motivo, seja-me permitido resumir os dois excelentes jogos de equipa numa individualidade: João Félix. Não são precisas mais palavras. Não esquecendo Rafa, em quem sempre acreditei como grande jogador.  

2 - Pelo mesmo motivo, decidi escrever antecipadamente sobre dois outros assuntos, antes de sair de Lisboa. O primeiro, para voltar às dores de crescimento do VAR. Parto sempre do princípio - que mantenho - que os pró deste escrutínio de segundo nível são mais do que os contra. Acontece que, por cá e também pelo que vejo nas competições europeias, aquilo que se poderia esperar não está a acontecer. Ou seja, era previsível que esta «ferramenta» (é assim que se costuma dizer, não é?) fosse progressivamente oleada com o decorrer da sua experimentação. Ora, o que, na minha opinião, está a acontecer é algo inverso: há agora mais discussão e contestação ao exercício do VAR e à colaboração com o juiz soberano no relvado do que havia no início. Por um lado, por razões de um protocolo que urge aperfeiçoar; por outro, por inadequada preparação e colaboração entre o que se passa nos estádios e a sala do VAR; e, ainda, porque sendo este um escrutínio adicional, a opinião pública é (e bem) mais exigente e implacável perante os erros objectivos que já foram cometidos. Ou seja, antes do VAR, dizíamos que o árbitro,  salvo erros absolutamente incompreensíveis, era absolvido pela circunstância de só ter dois olhos e ter de decidir numa fracção de segundo. Agora tem à sua disposição um VAR, com não sei quantas câmaras, de toda a forma e feitio, em velocidade real ou imagem lenta ou parada, repetida umas quantas vezes, pelo que o grau de exigência é máximo. Também não se percebe aquilo que deveria ser uma regra obrigatória: a de o árbitro de campo ir visionar, ele próprio, os lances no monitor, porque é ele por fim quem tem de decidir.. Reconheço que seriam mais alguns tempos de interrupção de um jogo que já tem interrupções que cheguem. Mas, pelo menos, se evitaria a fita de árbitros que só vão ver as imagens quando politicamente lhes convém.
Estou absolutamente certo da importância do VAR nos casos que podem ser objectiva e factualmente verificáveis. Refiro-me à linha de golo, a um golo precedido ou não de uma bola que passou ou não a linha do rectângulo e às situações de off-side. Mas para isso, e em particular para as situações de fora-de-jogo, são necessárias medidas que uniformizem a posição das câmaras nos estádios e um sistema de linhas virtuais que não fique ao sabor de manipulações (fáceis de fazer, não raro) ou de dúvidas de milímetros.
Já quanto aos penáltis, tenho muitas dúvidas. Estamos numa fase patológica de decisão e de análise dos lances susceptíveis de serem penalizados. Temos visto de tudo: penáltis forçados, absurda disparidade de critérios, mãos e braços para todos os gostos e desgostos, etc... Imagino a pressão a que o árbitro e o VAR estão sujeitos nestes lances, nesta recta final da Liga de apuramento do campeão e da luta pela permanência. Em vez de se terem tornado mais objectivos e menos discricionários com a introdução do VAR, sucedeu exactamente o contrário. Marcam-se agora mais penáltis por causa de mãos misteriosas e de sopros no adversário, como se o futebol fosse quase basquetebol e não fosse um jogo de contacto. Repare-se no penálti assinalado a favor do V. Setúbal, na Luz. Alguma vez seria assinalado em condições normais? E não diz o famoso protocolo que o VAR só deve actuar se tiver uma inabalável certeza da infracção? Então se algumas penalidades não intervencionadas pelo VAR foram justificadas porque faltava 0,5 por cento da certeza para se atingirem os 100 por cento (assim disseram os entendidos), como é que naquela caricatura de penálti se atingiu a plenitude da segurança?
Aliás, há uma injustiça a que, em tese, o árbitro de campo está sujeito nos penáltis. É que ele tem de ver (se é que sempre consegue ver) em tempo real e rápido, o que os senhores do VAR vêem num sofá, distante da pressão do estádio, numa posição diria irreal porque param, repetem, vêem na lentidão que querem o que os árbitros tiveram de apreciar instantaneamente. Daí estes estarem numa situação de enfraquecimento que os leva, subconscientemente, a defenderem-se ou a perderem o controlo e uniformidade das decisões. E, depois, há essa tonteria de se falar na «intencionalidade» da infracção (para além da «intensidade»). Mas será que alguém pode ajuizar da dita intencionalidade com um frame ou uma câmara lenta?
Um última nota pessoal: agora com o VAR, quase deixei de comemorar instintiva e arrebatadamente os golos do meu Benfica, porque a seguir vem, quase sempre, a sinalética do ecrã pelo árbitro. Depois, caso confirme o golo, o vulcão da manifestação de alegria já não existe. O VAR que, repito, tem aspectos muito positivos, está a tirar ao futebol um dos seus mais deliciosos condimentos: o da espontaneidade e da vibração em tempo real.

3 - A fazer fé no diktat sucessivo e calibrado pela oportunidade do tempo, o órgão disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol e outros órgãos públicos terão, no seu conjunto, já batido o recorde de interdições e outras penalizações de um Estádio de um clube no planeta. Já lá vão 7 decisões de interditar a utilização plena do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, popular e carinhosamente tratado por Estádio da Luz. Uma pessoa que nada soubesse destas peripécias da bola, diria que estamos diante de um clube, ainda não direi radicalizado por práticas pré-terroristas, mas violento até dizer basta. Por isso, nada como cortar a direito, assim pensaram os próceres decisórios.
Mais uns joguinhos de interdição do Estádio e aproximamo-nos das 17 jornadas em que o Benfica vai jogar na Luz lá fora no próximo campeonato nacional. Até se poderia pensar em encerrar, não direi para balanço, mas para transformar o relvado em palco de diversões ou num anexo da pomposamente chamada «Cidade do Futebol». Com comes e bebes, coiratos, macacos, jagunços, grunhos e laparotos.
Visto lá de fora, o que pensarão deste terrífico clube que se veria impossibilitado de enfiada em usar a estrutura que só ele próprio pagou? Perguntarão: mas porquê? Que país é esse? Em que teatro de guerra? E como assim, se todos os outros estádios do mesmo país são absolutamente imaculados e até exemplares nos seus cânticos de guerra e nas suas sempre elegantíssimas claques de apoio? Como é possível haver um clube com mais de 100 anos (sem torturar a data de nascimento) que regrediu tanto, a ponto de uma qualquer agremiação grega, turca, síria, argentina, uruguaia, colombiana e outras se comprazerem com a distância angélica que os separa do terrível Benfica?
Não, não. O que aconteceu há tempos no centro de estágio dos árbitros na cidade da Maia, foram meros arrufos e uma carinhosa ameaça a uns juízes que, pelos vistos, não tinham juízo? Houve alguma decisão? Os arruaceiros eram anonimamente anónimos? E as tarjas cretinas nos estádios, apelando subliminarmente (ou não) à violência, ou o hino preferido de certas claques sistematicamente insultando com impropérios violentos uma equipa que até nem está a jogar, mas que é sempre o tumor de fixação de mentes doentias? Mas, claro, o que tem tudo isto de censurável, quando comparado com umas tontas e evitáveis pirotecnias (aliás, de uso generalizado), ou umas tarjas de mais uns tantos metros quadrados de que se queixaram terceiros (que não os clubes que jogaram e receberam o Benfica) porque exibidos, ao que dizem,  por grupos de adeptos de claques não institucionalizadas?
É aqui que as autoridades (contra o Benfica) se revelam em todo o seu esplendor: venham mais interdições, em momentos bem escolhidos! Uma perturbaçãozinha a dedo, não porque se efective logo a interdição, mas porque é a tentativa de um grãozinho na máquina em momentos decisivos desta ou daquela competição. Para as autoridades (contra o Benfica) o importante nas ditas claques não é tanto o que elas fazem ou gritam de censurável; é, bem mais, o formalismo de estarem ou não registadas como «claques organizadas». Ainda aqui a forma é sempre mais importante do que o conteúdo. Aos desvarios das claques ditas legalizadas aplicam-se multas e multinhas, ignorando-se as traficâncias de largo espectro que estão aos olhos de toda a gente, mas sobre as quais as tais autoridades nada fazem, nada investigam, nada querem saber. Às claques não legalizadas, mesmo que o ilícito da sua actuação seja tal e qual o das claques legalizadas, passou-se à regra de juntar a interdição ou jogo à porta fechada às tais multas. Pois então que as tais autoridades (contra o Benfica) fiquem com as claques legalizadas ao colo e reclamem já a chave da Luz, epicentro dos desvarios!
Devo dizer, porém, que, legalizadas ou por legalizar, a medida certa seria, pura e simplesmente, acabar com as claques. Os clubes bem poderiam prescindir dessas formas tribais de apoio, porque este é dado genuinamente pelos sócios e adeptos que gostam de ir aos estádios ver e acompanhar as suas equipas.