O Benfica

OPINIÃO10.06.202207:00

Há uma ferida entre Vieira e Rui Costa e só Vieira e Rui Costa a podem sarar!

Oex-presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, perdeu esta semana extraordinária oportunidade de marcar clara e definitivamente pontos a favor da consideração, respeito, dignidade, gratidão, reconhecimento e justiça com que o universo de sócios e adeptos do Benfica deve também olhar para os quase 19 anos que levou de presidência da maior instituição desportiva do País, independentemente do processo judicial que o envolve e o forçou, fará um ano em julho, a abdicar do trono da Luz.
Perdeu Vieira essa oportunidade por ter finalmente decidido falar? Claro que não! Perdeu-a por não se ter limitado a defender-se do que considera injusto, tivesse a ver com o processo de investigação judicial em curso, tivesse a ver com a forma como, na verdade, parece ter sido na Luz excomungado o seu nome.
Luís Filipe Vieira tem todo o direito de falar. Tem todo o direito de se defender. Tem todo o direito de desabafar e de sentir magoado. Tem todo o direito de se afirmar ofendido, humilhado, injustiçado, e, até, de se sentir vítima do que lhe parece ser a profunda ingratidão de pares que o acompanharam ao longo de anos no Benfica.

Mas parece-me que não tinha o direito de deixar que o pé lhe fugisse para o chinelo e derrapasse na falta de sensatez, elegância, até dignidade com que, mesmo que inadvertida e irrefletidamente, se serviu do lendário nome de Eusébio, por exemplo, para desferir ataques apenas pessoais, e deixou-se levar pela maldita tentação de fazer revelações sobre a vida interna da vida do Benfica, para justificar o que lhe parece que está mal no reinado de Rui Costa. Só lhe ficou mal!
Um ano depois de ter sido quase forçado a abdicar da liderança das águias em nome de um processo de investigação judicial que em junho do ano passado o levou a ser detido para interrogatório, com o espalhafato, aparato, espetáculo, choque e impacto que certamente teria um qualquer terrorista responsável por crimes graves, ninguém poderia exigir ou esperar que Luís Filipe Vieira continuasse em silêncio por muito mais tempo. Escolheu o palco e a imagem que quis passar, e essas opções, como sempre muito discutíveis, só a ele dizem respeito e só ele é por elas responsável.

Em todo o caso, deve admitir-se que Vieira é um homem revoltado. E magoado. Está no seu direito. Ainda nem sequer foi acusado e já está, há muito, como todos sabemos, inqualificavelmente condenado, num País que, em muitos aspetos, tem feito gato sapato do Estado de Direito. Mas podia, e devia, Vieira, creio, ter-se limitado a fazer a sua (legítima) defesa e a defesa do que diz ser a honra e a gratidão devida por quem, no Benfica, o acompanhou durante tantos anos, como o atual presidente, Rui Costa. Mas não. Foi mais longe. Talvez não longe demais, mas seguramente mais longe do que devia. E cometeu, sobretudo, o ‘pecado original’ - absolutamente intolerável - de misturar a maior lenda do desporto português com uma espécie de «guerra pessoal» que o País tem o direito - e o dever - de recusar conhecer quanto mais partilhar.

É relativamente fácil admitir a mágoa de Vieira sobre a forma como foi sucedido na presidência do Benfica. Todos os benfiquistas se recordarão de ver Rui Costa assumir, em pleno relvado da Luz, a liderança do clube, três dias após a inenarrável detenção de Vieira, sem referir uma única vez o nome de Vieira. A verdade, também, é que Rui Costa o justificou, pouco tempo depois, numa entrevista então à TVI, com os superiores interesses do Benfica. «Tratou-se de defender a imagem do clube, acima do qual não está ninguém, nem Filipe Vieira nem o Rui Costa. Lembro que tínhamos um empréstimo obrigacionista a decorrer, e a minha única preocupação foi defender a posição e imagem do clube». Melhor ou pior aconselhado, creio que Rui Costa foi sincero.

Nessa entrevista à TVI, Rui Costa não deixou de falar de Vieira; defendeu, evidentemente, a presunção de inocência do presidente cessante e assumiu a relação entre ambos como algo que nunca poderia ser ignorado. Voltou a repeti-lo, meses mais tarde, no próprio canal do clube. Ou seja, se alguém, dentro do Benfica, quis apagar definitivamente o nome de Vieira (e bem sabemos como nenhum dirigente mais voltou a referir-se ao anterior presidente, o que é, também, de uma ingratidão inaceitável), não terá sido Rui Costa, pelo menos naqueles primeiros meses que se seguiram à detenção do anterior presidente.
Cometeu Rui Costa, porém, a meu ver, o erro absolutamente fatal de não ter tomado a iniciativa de voltar a falar com Vieira quando voltaram a ser possíveis os contactos entre Vieira e os principais rostos da administração da SAD das águias.

Vejamos a coisa em perspetiva: Vieira tinha, como espinha atravessada, a forma como, no Benfica, Rui Costa decidiu ir para assumir o poder. Devia Rui Costa ter feito uma referência à presunção de inocência a que Vieira tinha (e continua a ter) direito, mas o choque terá sido tão grande que a preocupação de Rui Costa passou a ser, não Vieira, mas o Benfica. Não concordo, mas também devo admiti-lo. Passado o impacto da ‘bomba’, e logo num segundo momento público (a entrevista a que fiz referência) Rui Costa, como a dignidade lhe impunha, falou de Vieira. Então sem complexos.

VIEIRA começou por suspender o mandato, e acabou mesmo por abdicar de todos os direitos e deveres como presidente do clube, revelou-o na entrevista desta semana, por pedido expresso de Domingos Soares Oliveira, na defesa do tal empréstimo obrigacionista. Vieira esteve impedido de ter contactos com Rui Costa (e restantes administradores) até novembro de 2021, se não estou em erro. Mas já em outubro estivera na Luz, a votar e a apoiar publicamente Rui Costa, esmagadoramente eleito, como se sabe, como 34.º presidente do clube.

O que não é, pelo menos, fácil de compreender é por que razão Rui Costa não quis, até hoje, voltar a falar com Vieira. Pelo que conheço de Rui Costa (que não sendo muito, é, pelos anos de relação profissional, alguma coisa) custa a entender. Sobretudo porque admito com facilidade que uma conversa entre os dois, com a frontalidade indispensável, talvez tivesse evitado que Vieira viesse agora, mais do que se defender, disparar para onde não devia. Terá Rui Costa julgado que Vieira passou a fazer-lhe oposição? Terá Vieira achado que Rui Costa lhe era apenas mais um a virar-lhe as costas?

Parece claro que Vieira continua a falar com muita gente no Benfica e que o Benfica continua a ser, mais ou menos, um livro aberto para Vieira. Se por um lado, é normal (Vieira dominou o Benfica por 20 anos!!!), por outro é prejudicial. Por uma razão: nunca haverá estabilidade, enquanto se levantarem suspeitas. E tudo passa a ser problema, em vez de solução. Surge a desconfiança, a vulnerabilidade, a falta de integridade, de respeito e de privacidade, e facilmente cresce a intriga, o preconceito, a difamação, num filme já muitas vezes visto. Por isso, nada melhor que uma conversa frontal. Talvez Rui Costa esteja mal influenciado; talvez Vieira tenha Ajudado a criar mal-entendidos.

ALGUÉM, de forma séria, pode ignorar o peso, o trabalho e a responsabilidade de Vieira na recuperação e no regresso do Benfica a um Benfica estruturalmente de dimensão mundial? Alguém que conheça verdadeiramente a história dos últimos 20 anos do clube pode esquecer Vieira ou ser-lhe tão ingrato que nem queira pronunciar-lhe o nome? Alguém com o mínimo de sensatez e humanidade pode olhar Vieira como um condenado?

Vieira cometeu muitos erros no Benfica. Liderou ao seu estilo e nem sempre o seu estilo foi o mais aceitável ou adequado. Tomou muitas decisões inapropriadas, perdeu e ganhou, deixou alguns gatos escondidos com o rabo de fora, e nem sempre se preocupou com a indispensável maior transparência na vida do clube. Sempre o conheci como alguém muito determinado em fazer mais do que falar, e em atingir os fins mesmo que tivesse de não olhar propriamente aos meios.

Todos os defeitos de Vieira não podem, nem devem, porém (a não ser que a Justiça o prove culpado) impedi-lo de ser visto como um dos mais marcantes (e importantes) presidentes da história do Benfica. E essa história, como sempre reconheceu, aliás, Rui Costa, ninguém poderá apagar.
Mal aconselhado, influenciado, condicionado ou limitado sabe-se lá porquê ou por quem, a verdade é que, ainda assim, o próprio Rui Costa acabou, realmente, por seguir a linha de completo afastamento de Vieira e isso tem, e terá, um preço. É o clube que perde.

Agora que Vieira foi claro na afirmação de o Benfica, para ele, ter acabado de vez (acredito que Vieira jamais queira voltar), talvez possam Vieira e Rui Costa reunir condições para se entenderem de frente e sararem as feridas do passado.
Ninguém espere que o Benfica precise apenas de uma boa equipa para voltar a ganhar no futebol. Ninguém ganha por ter apenas uma boa equipa. Ganha-se com estabilidade, união e coesão, que é o que o Benfica, pelos vistos, continua a não ter.
Olhem-se ao espelho e pensem nisso. Talvez o Benfica possa, então, sair a ganhar!