O Ano velho

OPINIÃO31.12.201903:00

1Quis o calendário que eu escrevesse esta crónica no último dia do ano. Salvo erro, a 52.ª de 2019, pois não me dei férias nesta página de A BOLA. Como também já aqui referi, ainda me surpreendo com o facto de sempre haver assuntos que selecciono para abordar. Raramente tive a conhecida angústia do dia anterior, qual seja a de ainda não ter nada sobre que escrevinhar. O desporto, e em particular o futebol, dão sempre pretexto, mesmo se para uma qualquer minudência transformada em assunto de gala.


A propósito da passagem do ano, nunca alinhei na ideia de satisfação ou de alegria compulsivas. Por uma questão de calendário, mandam as regras administrativas da sociedade que tenhamos cara alegre na passagem de ano e cara de palhaço no entrudo. Ora, a minha disposição tem o seu calendário próprio, não programável à distância. A alegria exuberante não se clica como uma tecla de um qualquer telemóvel dito inteligente. O meu tempo não é, necessariamente, o tempo de uma qualquer convenção. Posso fazer esforço para me adaptar a esse tempo que me é exterior, mas basta esse esforço para tornar deslocada a fantasia da satisfação.
Quanto mais verdadeiro se é consigo e com os outros, mais difícil se torna a sintonia entre os sentimentos de dentro e os acontecimentos por fora. Por vezes, acontece mesmo que, por instinto de defesa ou de autenticidade, se fica possuído de um estado de espírito oposto ao decretado pela norma, pela tradição ou pela convenção. Quantas vezes se fica melancólico na alegria distribuída em festins com hora marcada, quantas vezes se fica abúlico na euforia do artificial. No primeiro dia de Janeiro, limito-me a poupar tempo para os outros trezentos e sessenta quatro ou cinco dias do novo ano.
2Em cada termo de um ano civil, é costume fazer-se o balanço desportivo. Não o contabilístico que, esse para as SAD, coincide com a sua metade e não com o seu término. Mas o dos acontecimentos e protagonistas. Por regra, estes balanços são influenciados pelo maior ou menor tempo decorrido, porque a nossa memória tende a desconsiderar mais os meses iniciais e a valorizar os meses finais. Neste texto corrido, limito-me a um balanço vocabular do futebolês e a enunciar os acontecimentos nacionais que mais me significaram.


Quanto a palavras e expressões no plano desportivo, 2020 trouxe-nos palavras novas, ressuscitadas, ampliadas e erradas. Seleccionei dez delas, sem qualquer preocupação de ordenação. Começo pela expressão «mengão» [1], vocábulo associado à equipa do Flamengo, que Jorge Jesus tão bem soube aportuguesar. «Dormir com bola» [2] é uma frase soporífera para quem a ouve e, certamente, uma atitude inteligente de um treinador com boa imprensa (isto no futebol masculino, pois no feminino não fará tanto sentido). Depois do «losango invertido» e outras figuras mais ou menos trapezoidais que marcaram anos atrás, chegámos ao primado do «ataque à profundidade» [3] (ou será ataque na profundidade, pois que ataque à profundidade pode dar cabo dela…). Crescentemente, temos os famosos «blocos» [4] que recuam ou avançam e se afastam ou juntam consoante se esteja na «primeira fase de construção», «no último terço», ou «em basculação», favorecendo ou prejudicando a criatividade «entrelinhas» (reconheço que, neste texto, escrevo algumas coisas também nas entrelinhas, faltando-me, porém, os blocos). Por sua vez, continua no top-ten o «à condição» [5], como uma das mais pobres expressões de preguiça linguística e de que já aqui tratei amiúde. Em forte concorrência com esta, temos, em expansão endémica, um modismo (em forma de adjectivo) «expectável» [6], que me lembra outro que há anos se dizia, por dá cá aquela palha, o «incontornável». Agora é tudo expectável, mesmo que já tenha acontecido. Por exemplo: «Foi um resultado expectável». Assim vamos ouvindo e lendo até fartar que seja expectável que o expectável desapareça e possamos voltar ao velhinho e mais adequado «esperado(a)». A «chicotada psicológica» [7] rejuvenesceu nesta época com mais de metade dos 18 clubes primodivisionários a dela tentarem extrair melhorias, havendo até treinadores que, de uma hora para a outra e em jeito de «economia circular», conseguem passar de chicoteados a incumbentes de chicote. Nas palavras seleccionadas pela Porto Editora para a palavra de 2019, há uma que se pode analisar, também, do ponto de vista do futebol: «seca» [8]. No caso de seca de água, associamo-la ao aquecimento global. No caso de jogos chatos, conversas de treta e outras manifestações pueris da futebolândia, a seca exige «esquecimento global». Outro vocábulo, melhor dizendo um neologismo muito a propósito, é «varíssimo» [9], uma combinação de Veríssimo VAR e de VAR veríssimo, qual deles mais influente na distorção dos acontecimentos.


Por fim, uma palavra (nome) que me diz muito, Félix [10], e que agora em função do jogador João Félix tem suscitado a questão do modo como se deve pronunciar. Não vem mal ao mundo pronunciar-se «félis» ou «félics». Mas, se quisermos ser rigoristas, a pronúncia certa é «félis». Aliás, no Benfica, que eu me lembre já tivemos nos anos 50 um defesa de nome Félix e um grande dirigente dos primórdios do clube que foi Félix Bermudes, sendo que, neste caso, o Félix era nome próprio e não apelido. Não conheço ninguém que pronunciasse os seus nomes como «félics». Claro que, noutras línguas, Félix se pronuncia terminando em cs (caso do francês e inglês), mas já não no italiano (Felice).


Se consultarmos o Ciberdúvidas, podemos lá ler a explicação: «a grafia latina aconselharia a pronúncia em /ks/, mas a palavra entrou no português muito cedo, ainda na fase da formação da língua, aparecendo já no século XI registada como Felici e Felice, sendo, pois, esta a pronúncia que existia e perdurou, mesmo quando se recomeçou a grafar Félix».


Há dias, li em A BOLA a excelente entrevista do nosso Golden Boy. Quando o entrevistador Nuno Reis lhe perguntou como pronunciava Félix, ele respondeu (rindo-se) «Félicse», pelo que - concluiu o jornalista - «com dois pais professores, a dúvida estará finalmente desfeita», ao que João Félix rematou com um «exactamente». Tudo bem, como atrás disse, há uma certa margem de facultatividade que deve ser familiarmente respeitada e, jogando agora em Espanha, «félics» faz sentido.  Só não compreendo por que razão o entrevistador proclama urbi et orbe que «a dúvida estará finalmente desfeita»…

3Por falta de espaço, enuncio, tão-só, os factos que, apenas em Portugal, elegeria para o top-ten de 2019 (também aqui a ordem é arbitrária):
- A Reconquista do título nacional pelo Benfica, assim alcançando um penta em 6 campeonatos, através de um quase inigualável trajecto que Bruno Lage conseguiu;
- A transferência de João Félix para o Atlético de Madrid por 120 milhões de euros;
- A vitória do FC Porto na UEFA Youth League 2019;
- A vitória de Portugal no Mundial de hóquei em patins, o que já não acontecia há 16 anos e logo na Catalunha;
- As conquistas do Sporting na Liga europeia de futsal e de hóquei em patins;
- A entrada da equipa do Benfica na Champions de voleibol;
- A qualificação de Portugal para a fase final do europeu de andebol, 14 anos depois;
- A vitória de Portugal na primeira edição da Liga das Nações em futebol;
- A consistência e competência profissional de dois jogadores portugueses: Pizzi e Bruno Fernandes;
- O êxito assinalável de treinadores portugueses no estrangeiro, aqui simbolizados pelo tremendo sucesso de Jorge Jesus num país ao qual chamamos irmão mas que, muitas vezes, desvaloriza e ridiculariza os nossos melhores;
Esta lista foi, propositadamente, elaborada à medida que ia escrevendo. É, como tal, produto da minha primeira intuição (normalmente a que, dentro de nós, é mais genuína) e, obviamente, terá deixado injustamente de lado outros acontecimentos ou protagonismos.

P.S. Ainda vou a tempo do meu 11º destaque: a atribuição ao Benfica do prémio da melhor Academia do mundo (a par da do Ajax), assim se reconhecendo a excelência ímpar do sonho de Luís Filipe Vieira.