Norma, lacuna e analogia

OPINIÃO27.03.202003:00

O tolo alvitre de um tolo cretino

Bill Shankly foi treinador do Liverpool entre 1959 e 1974. Apesar de tão longo período no exercício de tão prestigiada função, a História não guarda dele nenhuma façanha desportiva em especial mas uma frase que, de tão cretina, passou a ser citada como se fosse uma epifania decretada por um oráculo supremo:
«Algumas pessoas acreditam que futebol é questão de vida ou morte. Fico muito decepcionado com essa atitude. Eu posso assegurar que futebol é muito, muito mais importante.»
 Não são precisas quaisquer palavras, pois não?

Império Romano e Era Digital

Ahistória está a passar por nós como nós estamos a passar por ela, mesmo sem nos apercebamos de tal. Por exemplo: a etapa maior da periodificação historiográfica corresponde a dez séculos, ou seja, a um milénio, contado este entre as quedas do Império Romano do Ocidente (em 476 DC) e do Oriente (1453). Mas aqueles que foram contemporâneos destes eventos não eram capazes de dividir a História em segmentos de tempo. Já nós, as gerações que estão vivas no presente, podemos perceber que assim como nascemos na chamada Idade Contemporânea também haveremos de morrer na nova idade, que virá a ser conhecida como Era Digital.
E se não houve jamais, em toda a História, instituição política alguma mais poderosa e transformadora do que o Império Romano, também é verdade que uma simples enxaqueca era sentida por igual tanto por um escravo anónimo como pelo Imperador. Do mesmo modo, também um sem-abrigo nosso vizinho pode dirigir-se às urgências de um hospital público para ser operado a, digamos, uma apendicite. Já um Faraó egípcio ou um Imperador chinês incorriam em sérios riscos de morte causada pela infecção do apêndice.
 
Sem mais liga, o  busílis

Finalmente. Tardou mas acabou por chegar a confirmação oficial: os Jogos Olímpicos de Tóquio foram adiados sine die. Tal como hão-de ser também todos os demais mega-eventos desportivos inscritos no corrente calendário, desde o Euro-2020 a Grandes Prémios de Fórmula 1, da Volta à França ao MotoGP.
Todas estas competições gozam de uma matriz comum: não chegaram a ser iniciadas. Mas como decidir agora sobre a conclusão das competições desportivas que foram interrompidas? Por sobre o manto das infinitas incertezas pairam duas certezas: i) não vai haver condições para uma conclusão desportivamente normal das mesmas; ii) qualquer solução plausível tem de se revestir de legítima juridicidade, ainda que desportivamente contestável. Para complicar mais a coisa: não há, tanto quanto eu conheça, nenhum regulamento, de nenhuma modalidade, em nenhum país, que preveja a situação em crise. Ou seja, se não há norma alguma com tal previsão também não pode haver nenhuma estatuição aplicável. Estamos então perante uma lacuna. Dando um exemplo concreto e não meramente hipotético: o n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento de Competições da Liga diz que esta «poderá, em caso de força maior e circunstâncias excecionais, devidamente justificadas, prorrogar o termo da época desportiva, assim como suspender total ou parcialmente qualquer competição oficial por si organizada». Mais: o artigo 16.º  do referido quadro normativo dispõe que «as competições oficiais por pontos terão obrigatoriamente duas voltas simétricas e os participantes encontrar-se-ão todos entre si, uma vez na condição de visitados e outra na de visitantes, nos respetivos estádios, não sendo autorizada a inversão dos jogos». Curiosamente, já o Regulamento do Campeonato Nacional de Seniores prevê expressamente, no n.º 2 do seu artigo 5.º, que «as lacunas existentes no presente Regulamento são integradas pela Direção da FPF».
Enfim, o verdadeiro busílis da questão não reside, porém, na suspensão ou no adiamento. O que está realmente em causa é saber o que fazer se não for possível concluir a prova em tempo útil, com a efectiva realização de todos os jogos ainda por cumprir nas dez jornadas em falta. Aliás, a Comissão Permanente de Calendários da Liga de Clubes, composta por oito clubes, já se reuniu, tendo concluído pela impossibilidade de prever uma data para o eventual regresso das competições.
Quanto ao universo extra-futebol, destaque-se que na Fórmula 1 existe uma regra segundo a qual «se a corrida não puder ser retomada, os resultados serão retidos da ordem no final da penúltima volta antes da suspensão da corrida».
Esta semana também a Federação Polaca de Andebol deu por terminada a PGNiG Superliga, reconhecendo como campeão o Vive Kielce, com mais três pontos e mais um jogo que o rival Wisla Plock, embora também tivesse vantagem no confronto direto. Em suma: juridicamente, se não há norma há lacuna, e se há lacuna tem de ser integrada, nomeadamente e desde logo por recurso à analogia.

Entrevista imaginária

- Não sendo possível completar o campeonato, qual o melhor critério para entregar as faixas de campeão - a moeda ao ar ou uma votação democrática dos adeptos?
- Prefiro uma solução mais objectiva: a do mérito!
- Mas como se faz para apurar o mérito sem se jogar?
- Aí é que está o mérito da solução. Se somos os melhores não precisamos de prova mais nada!