Nem tudo é mau no ‘Futebol Covid’
Vamos chamar-lhe futebol covid. É um outro futebol, como já era outro o futebol de televisão, com penáltis à medida da nova lei da intensidade da falta e dos golos decididos ao milímetro. Este futebol, o tal futebol covid, não é recomendável, nem, sequer, comparável, porque o vazio e o silêncio das bancadas transformam-no num teatro de sombras, não raras vezes lúgubre, triste, soturno, enfim, a antítese da razão pela qual o jogo existe na sua versão mais moderna de espetáculo de multidões.
Mesmo assim, este futebol do vazio e dos silêncios é bem melhor do que a alternativa do futebol desistente, ou, literalmente, do futebol inexistente.
Curioso, entretanto, assinalar que a experiência testada de duas jornadas nacionais nos deu uma perspetiva nova da espantosa capacidade que o jogo tem de se regenerar e de se auto transformar, mudando em função das suas circunstâncias. De tal forma, que julgamos não atraiçoar a expressão universal de Ortega y Gasset se dissermos que também o futebol é o jogo e as suas circunstâncias.
Há uma clara tendência de equilíbrio que se substitui à previsão inicial de que, sem público nos estádios, se iria acentuar a diferença de valores das equipas. Talvez pela razão mais simples de que são os grandes, e aqueles que mais se lhes aproximam, que estão habituados a jogar com esse vento favorável de um público em apoio visível e, sobretudo, audível.
Em Famalicão, onde mora uma equipa de surpreendente qualidade e superiormente dirigida, o FC Porto não deixaria de ter cavalgado uma dinâmica de vitória criada pelo golo do empate, se tivesse tido a força motriz das bancadas em festa. Tal como o Benfica, apesar das deficiências estruturais de que padece a equipa de um fragilizado Bruno Lage, teria acabado por chegar à vitória no jogo com o Tondela e até, muito provavelmente, despertado a tempo de evitar o empate de Portimão.
Mas há mais do que isso. Olhe-se para a forma estranhamente descomplexada como o Marítimo jogou no Dragão, como o Tondela atuou na Luz, ou para a surpreendente facilidade com que os jogadores do Portimonense cumpriram a ordem do seu treinador de jogarem a segunda parte, com o Benfica, «como equipa grande».
É verdade que os jogos não têm a emoção do espetáculo ao vivo que é o seu habitat natural, mas são, na sua esmagadora maioria, aquilo a que o povo linearmente chama de jogos entretidos. Ou seja, jogos de boa saúde competitiva, que nos trazem à ideia variações de análise tão interessantes como a de constatarmos que há, sobretudo nas equipas dos chamadas grandes, bons jogadores que, afinal, não são assim tão bons, em função da sua, agora, mais evidente fragilidade psicológica e nos jogadores de equipas consideradas de dimensão média, ou mesmo pequena, jogadores que muito crescem no estímulo criado pela ideia de que, finalmente, todos os jogos, em todos os campos, se jogam muito simplesmente por onze jogadores contra onze.
Recentemente, Sérgio Conceição, com o seu habitual pragmatismo, confessava que nunca pensara ser tão difícil treinar uma equipa nas atuais circunstâncias. Percebo o que diz e entendo, mesmo, que estes treinadores, se souberem aproveitar bem a experiência a que têm sido forçados, sairão destes tempos de exceção como melhores treinadores, ou seja, líderes mais fortes e competentes.
Parece, aliás, cumprir-se a ideia que lançámos em vésperas do reinício deste campeonato que ficará para a História: nunca, em tempo algum do passado do futebol, a intervenção do treinador foi tão decisiva na equipa que dirige.