Natal digital
1 - Hoje é dia de Consoada natalícia. Resolvi, por isso, que esta crónica semanal não abordará o futebol e afins. Assim lhe dou descanso ou, melhor dito, sou eu a dele descansar. No boxing day voltarei ao futebol, para me deliciar com a tradição na velha Inglaterra. Hoje, o meu «contador da Luz» aborda a Luz do Natal sem contador.
É certo que o Natal já não é o que era, apesar da tradição. Para um católico como eu, é difícil descortinar a celebração simbólica do nascimento do Menino Jesus no meio de tanta materialidade e futilidade que tende a capturar as pessoas. Agora, é sinónimo de frenesim, angústia, pressa, maçada, tecnologia, obrigação e até hipocrisia, numa coligação entre cristãos de meia-tigela, agnósticos e ateus traduzida na apoplexia comercial e na conjugação de palavras de circunstância mecanicamente reduzidas a uma liturgia profana.
Acontece que, neste ambiente cada vez mais hostil, o Natal ainda resiste em ser o símbolo máximo da Vida. Hoje, como há 2000 anos, continua a estar também impregnado de doçura maternal. Maria deu à luz o Seu Filho na discrição e despojada de conforto, mas plena de doçura. «Anuncio-vos uma grande alegria» (Lc 2,10) é a mensagem das mensagens. Suavemente, simboliza a vitória da vida sobre a morte.
Gosto do gosto por um Natal com a magia que advém (e não desaparece) do imaginário infantil feito de sonho, doçura, afecto, idealismo, bondade. De um Natal que seja capaz de, por uns instantes, tornar os adultos mais crianças e as crianças mais meninos e meninas. De um Natal, em que o melhor não é só a data e o que ela representa do nascimento do Menino-Deus, como também é a atmosfera dos dias que o antecedem, porque o melhor não é o chegar, mas o ir ao encontro de, não é o possuir, mas vivenciar.
Há espírito doce na ambiência e na iconografia natalícias. Na policromia que lhe está associada e na polifonia que o simboliza. Na alegria esperançosa lida nos olhos das crianças, ainda imunes à vulgarização da data. No presépio renovado. No pinheiro de Natal e nas pinhas resinosas. Na temperança de Belchior, Baltasar e Gaspar e na fragrância do incenso. Na fértil romã que dá sabor à união das partes. Na estrela-do-Natal, que nos olha no meio de companheiras flores.
Mas há uma indisfarçável amargura no Natal com a pressa do nada, do que se compra com o peso do vácuo ou, já na ausência do pensar, dos litros de ansiedade destilados. No Natal impositivo, que quase anula o tempo e o espaço para se olhar o outro, olhos nos olhos. No Natal que passa sem se passar. Tal como nas fotografias e selfies que se tiram para depois exibir o que se fotografou sem nunca se ter visto com os olhos.
O que sobra em consumismo desenfreado, falta em espiritualidade adventista. É assim cada vez mais, perante a primazia do (de)ter, do comprar, do usar, do trocar. Uma correria sem nexo, acorrentada pela obrigação, mais do que alimentada pelo coração. Atafulha-se o Natal em listas e preçários. A alegria de dar cede lugar à amargura de ter de dar. A serenidade do pensamento da escolha cede passo em favor do turbilhão de uma escolha que já não o é. Uma permuta instrumental que transforma o prazer de dar em desprazer de despachar. Agora, até o Natal é antecedido por uma nova mercearia com nome inglês, pois claro: Black Friday. Nisso somos imparáveis, importamos tudo o que seja consumismo. É aproveitar a ilusão (e, às vezes, a trafulhice) dos preços em regime ioió, quer dizer, subindo para depois descer e descendo para depois subir.
2 - Gosto da ideia de esperança que engravida o Natal, e que, botanicamente, associo à natureza do musgo do presépio.
Musgo de esperança? Como então, se o pobre musgo nem sequer tem raízes, como briófita que assim nasceu? Como então, se não tem sementes para se reproduzir, nem flores e frutos como fonte de vida? Como então, se está condenado ao nanismo por não ter um verdadeiro sistema vascular de condução da seiva?
Todavia, insisto na defesa do musgo como sinal de esperança. Para isso esforço-me por peregrinar até ao Natal da Vida. E lá deleitar-me com a memória doce de quem me deu vida.
O musgo é, por definição, sinestésico. No seu cheiro inigualável em terra molhada, no seu aveludado tatuar, na quietude da sua extensão, no olhar enternecido de quem nos quer aconchegar no presépio.
E é um milagre da natureza: estes minúsculos corpos nem provêm dos óvulos de um ovário, nem têm um embrião e, no entanto, germinam como uma semente. De vida.
3 - Num tempo global e digital, o presépio cedeu lugar ao átrio do centro comercial, a árvore natalícia tem agora apenas a medida de ver qual é a mais alta numa corrida de tipo Guiness, a igreja é substituída pelos templos e wonderland de diversão, a chaminé dos sonhos infantis virou rede social digitalizada em série e transformou-se na cadência ininterrupta de sons dos telemóveis a anunciar não sei o quê. Esta corrida começa cada vez mais cedo, agora em Novembro, quem sabe amanhã em Outubro, numa prática que tudo banaliza e num jogo de luzes que tudo mercantiliza. Descobrir um nicho de silêncio luminoso para parar e sentir é um achado no meio de tanto ruído, luzências e holofotes. O Natal, festa da vida, do lar e da família, trespassou-se para a rua. A surpresa que alimentava o espírito da quadra e fortalecia o valor da raridade é definitivamente tornada uma avalancha já sabida ou requerida, onde não se dá valor a nada de um falso tudo e se acha que qualquer escolha pode ser feita sem renunciar a nada.
No fim, a exaustão do corpo, a carência do espírito, a inutilidade do gasto, a velocidade uniformemente acelerada da compra precipitada, o vácuo depois da apoplexia. E lá se foi o Natal. Mais um.
4 - Agora que vivemos no tempo dos smartphones e das redes sociais, outro martírio se nos depara. A enxurrada de «Boas Festas» e outras expressões do momento cai, em inusitada abundância, nas nossas maquinetas mais ou menos «smart». Confesso que tenho saudades do tempo em que, por esta época festiva, se falava com quem verdadeiramente queríamos. Agora é sempre a andar em jeito de poluição de afectos: centenas de SMS (e mails) de conhecidos, desconhecidos, ignotos, chatos e insinuantes. Sem selecção, sem critério, ao dispor de um dedilhar num ecrã insensível. Abomino, sobretudo, os que logo percebo que foram enviados para um vasto conjunto de «amigos», ou pior ainda, para «car@s amig@s», com «beijos ou abraços» ou, na linguagem cifrada «abreijos» para todos. E, também, os que, na obsessiva preocupação de não caírem nas palavras simples e mais usadas, nos enviam bizantinices florentinas, em prosa ou falso verso, que, de tão kitsch, me fazem perder o apetite mesmo diante de um saboroso bolo-rei.
Aproveito para clamar por uns dias natalícios sem um «tsunami de SMS e quejandos». Depois de falar com quem quero, o meu telemóvel vai tirar uns dias de férias, remetendo-se a um silêncio que ele próprio me implora…
5 - Há uns dias, entre luzes e luzinhas, estive numa sala de espera de um serviço médico cerca de meia-hora. Durante esse tempo, entraram sete pessoas, jovens e adultos. Ninguém cumprimentou ninguém. Ninguém olhou para ninguém. Todos usando o seu smartphone sem um segundo sequer de interrupção. Observando as suas faces, posso pressupor que estavam a festejar um qualquer natalzinho digital, via Facebook, WhatsApp, e outras ferramentas-meios transformadas em fins.
Cheguei a casa, e comecei a ler um livro que recomendo a quem ainda não está possuído pela turbulência tecnológica. Chama-se «Minimalismo digital», de Cal Newport, e convida-nos a viver melhor com menos tecnologia e a reflectir sobre as consequências do «demasiado». O livro começa, aliás, com uma citação saudavelmente provocativa: «Eu costumava ser um ser humano» …
Poupado, à tangente, pelo malfadado acordo ortográfico que retirou a maiúscula aos meses, estações do ano, pontos cardeais, etc., o Natal vai também perdendo a singularidade da maiúscula e adquirindo a pluralidade do vazio, assim se transformando o Natal em natais.
Pela minha parte, não abdico de festejar o Natal do nascimento d’Aquele em que acredito. No encontro e no reencontro. Com o futuro gerado no passado. Com azevinho, alecrim e rosmaninho.