Nascidos à beira do Sado

OPINIÃO23.12.201923:38

Em janeiro de 2002, José Mourinho, cidadão português nascido em Setúbal no ano de 1963, foi contratado pelo FC Porto. Nessa temporada nada ganhou, mas, na imediata, fez promessa que ficou gravada para a eternidade: «Seremos campeões.» Prometeu e cumpriu. Conquistou o Campeonato e, como prenda inesperada, ofereceu aos adeptos portistas e a Portugal a Taça UEFA. Um ano mais tarde, voltou a ser campeão nacional e, prenda ainda mais valiosa, venceu a Liga dos Campeões, na final disputada com o Mónaco em Gelsenkirchen, na Alemanha.
Em junho de 2004, dois anos e meio depois de ter chegado ao Dragão, foi contratado pelo Chelsea e tornou-se um dos treinadores mais bem pagos e pretendidos na Europa.
Em Janeiro de 2019, Bruno Lage, cidadão português nascido em Setúbal no ano de 1976, foi promovido a treinador principal no Benfica. Apesar de nada prometer foi logo campeão nacional, partindo com sete pontos de atraso e chegando ao fim com mais dois.  Triunfou ainda na Supertaça e na International Champions Cup, uma prova não oficial mas com direito de admissão reservado aos emblemas de maior prestígio.
Apesar da distância de dezassete anos, entre uma carreira absolutamente confirmada e outra em maturação, é possível imaginar um  jogo entre ambos, em que ao intervalo Lage leva vantagem sobre Mourinho, mas na segunda parte este vai ser demolidor.
É certo que essa segunda parte, refletida na época seguinte de cada qual, ainda agora começou, mas para o treinador benfiquista conseguir manter a dúvida sobre o desfecho até ao fim, além de ter de voltar a ser campeão, precisa, no mínimo, de uma presença na Liga Europa assinalável. A Mourinho ninguém pediu a vitória na Taça UEFA, mas ele alcançou-a, por isso, chegar longe (bem longe) é o mínimo a que está obrigado Lage para dar alguma graça a este  interessante despique entre dois treinadores setubalenses que apresentam em comum, além do local de nascimento, à beira do Sado, terem começado a desenhar as suas carreiras no mesmo mês e em circunstâncias  extremamente desafiadoras e aliciantes.

Mourinho sabia o que queria,  tinha vontade de andar depressa e dois anos bastaram para se transformar em treinador ricamente pago,  entusiasticamente  discutido e avidamente requisitado. Todos os clubes desejavam o melhor!
Lage também sabe o que quer, embora, aparentemente, menos apressado e, talvez, com excesso de disponibilidade para conversas académicas e experimentações de duvidosa eficácia que o futebol ao mais alto nível aceita mal, porque  o sucesso não espera e o talento que parece ser ou é ou não é.
Trago este exercício jornalístico à colação a propósito do afastamento do Benfica da fase final da Taça da Liga. Não digo que Lage se tivesse desinteressado de uma prova que a águia dominou  por sete vezes em doze edições. Se ele pensou impor-se no seu grupo com a utilização das chamadas segundas linhas, sem se desviar da construção de um plantel curto mas competitivo em todos os lugares, apenas poderá ser criticado por não se ter apercebido da inviabilidade de fazer vingar essa louvável pretensão devido ao indisfarçável desequilíbrio entre os habituais titulares e os outros,  não em todas as posições, mas em boa parte. Esta terá sido a conclusão mais evidente a retirar da experiência falhada que foi ir a jogo maioritariamente com suplentes.
O espírito tolerante de Lage leva-o a acreditar até ao limite do razoável e conceder sempre mais uma oportunidade a quem talvez não a mereça, porque um treinador ganhador deve procurar ter em cada elemento do plantel um profissional de corpo inteiro, disciplinado e disponível, e só depois um amigo. Que interessa aos adeptos saberem que os jogadores andam aos abraços, o ambiente é excelente e a paz no grupo fantástica  se no campo os desempenhos ficarem aquém do que será admissível por parte de quem é principescamente pago e tratado para exercer a sua profissão.

O Liverpool utilizou uma equipa de segundas linhas (sub-23) na Taça da Liga inglesa com o Aston Villa e levou cinco. Mesmo na meia-final do Mundial de Clubes, diante dos mexicanos do Monterrey, Jurgen Klopp só desembrulhou o jogo depois de ter feito entrar os pesos pesados Sadio Mané e Roberto Firmino e com eles acionar o trio de sonho, com Salah.
Não se questiona o valor dos  jovens praticantes que foram titulares, mas, em futebol, há alturas, muitas até,  em que não há espaço para escolhas, jogam os melhores e ponto final.
Se fosse esse o entendimento de Bruno Lage, muito provavelmente o nome do Benfica estaria hoje inscrito  no programa dos oitavos de final da Liga dos Campeões, com a importância que isso teria para a imagem do clube. Nem ele próprio iria assistir à decisão do primeiro título de 2020 sentado no sofá, por ter tentado manter a «coerência dos onzes» na Taça da Liga. Na próxima, não se incomode por ser incoerente,  desde que ganhe. Os adeptos aplaudem, de certeza.