Nascer e... renascer!...
Fez exactamente ontem três semanas que, de um contentor do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, telefonei ao José Manuel Delgado a comunicar-lhe que tinha sido agarrado pelo Covid-19 e não estava em condições de escrever o meu habitual artigo de sábado! Confesso sinceramente que o disse sem qualquer dramatismo, pois não me passou pela cabeça que não voltaria a escrever. Apenas, naquele momento, não tinha condições materiais para escrever.
Regressei a casa às quatro da manhã de sábado e aí comecei a minha luta contra o desconhecido, contra aquele anonimato que detesto. Eu sei onde estão os meus amigos, de quem estou hoje afastado materialmente; mas ter o inimigo dentro de nós, é coisa que só ao diabo pode lembrar!
Este ano de 2020 é um ano redondo, como soe dizer-se, e, neste caso, o inicio de uma nova década. Para mim, 2020 é um ano em que comemoro alguns números redondos.
Ironicamente, há cinquenta anos - Março de 1970 - eu estava em plena viagem de final de curso no Japão, por ocasião da Feira Internacional de Osaka. Lembro-me a surpresa que me causou, quer em Osaka, quer em Tóquio, e noutras cidades, ver milhares e milhares de pessoas de máscara para se protegerem e protegerem os outros. Para não ser hipócrita, devo dizer que num primeiro momento achei a situação perfeitamente ridícula; mas passados esses primeiros momentos, percebi o que isso significava de avanço de civilização e educação, de respeito pelo próximo. E não mais deixou de ser um povo digno da minha admiração.
Tinha no pensamento voltar este ano ao Japão, obviamente após os Jogos Olímpicos que, afinal, também se não realizam.
Mas há cinquenta anos também alcancei um dos primeiros grandes objectivos da minha vida - a licenciatura em Direito.
Há quarenta anos - a fazer a 13 de Agosto de 2020 - comecei a minha carreira desportiva (como dirigente) pela mão do sempre saudoso - e cada vez mais - João Rocha! Estes quarenta não estavam a correr muito bem, pelas razões que facilmente se adivinham, e a que se juntou este bicho que nos conduz a uma situação em que por vezes o balanço de uma vida se faz apenas numa hora ou numa noite. Uma hora ou uma noite em que percebemos que tudo é efémero e que perdemos muito tempo com banalidades quando a vida é tão importante. E a saúde é bem que não se compra, e, portanto, que devemos agradecer seja a quem for.
Mas, relativamente a estes quarenta anos, uma resposta a doença me deu, e uma força para recuperar: valeu a pena!
O futebol é um mundo à parte de que falamos, vezes em demasia, pelos seus lados negativos. Mas tem o seu lado positivo que também é um mundo à parte, e os que fizemos alguma coisa por isso devemos sentir orgulho, porque é justificado!
Foram centenas de mensagens, emails, telefonemas, de dirigentes antigos e actuais, jogadores, treinadores, de todos os quadrantes e clubes, sempre com um pedido de desculpas por me estarem a cansar. Longe disso. Cada telefonema, cada mensagem não me cansou, antes me deu mais força.
Fiz ontem 73 anos. Não me lembro desse dia. Mas não me vou esquecer do dia em que renasci, há bem poucos dias. Nascer e renascer não deixa de ser uma experiência interessante e, sobretudo, muito agradável!...
Meu caro Fernando
Foi no dia de Páscoa que voltei para a minha casa. Nunca me senti preso no hospital, pois sempre fui tratado com atenção, profissionalismo e mesmo carinho que é mais importante que o melhor remédio. Mas a sensação que senti ao sair, com um dia de sol e ruas despoluídas como há muito não respirava, foi a sensação da ressurreição e da liberdade.
Curiosamente, quando chegava a casa, recebi um SMS de um amigo comum que dizia apenas isto: «Que belo dia de Páscoa. Viu o texto do Seara?»
É claro que fui imediatamente ao computador. Não te vou dizer se o texto é bom ou mau, se está bem escrito ou mal escrito. Sei que foi escrito para mim e sobretudo com o sentido de dar um exemplo vivo de que a rivalidade não tem que gerar ódio - sentimento que mata mais que o Covid-19!
Quando acabei de o ler, com o tórax mais apertado, mas por melhores razões, pensei para com os meus botões o que agora te questiono: já pensaste na chatice que era o Alfredo Trindade e o José Maria Nicolau serem do mesmo clube? Há quem não perceba isto, mas também pouco nos deve importar porque quem não percebe isto pouco percebe de qualquer coisa que seja. Não percebe a beleza da diferença, da liberdade de ser diferente dos outros, mas do respeito que devemos ter pela diferença e liberdade dos outros.
Mas sabes, Fernando, porque é que a nossa diferença clubística não desune, antes pelo contrário? Porque vivemos os nossos clubes com verdadeira paixão e liberdade de expressão e opinião. Para nós, na Luz ou em Alvalade, não há gaiolas! Somos homens livres e é na liberdade de ser diferente que continuaremos a ser amigos e rivais.
E podem mandar pôr o jantar na mesa que estou com apetite e... muitas saudades!...
O compromisso
Tem muitos, mesmo muitos anos, o compromisso da partilha da alegria e da tristeza, da saúde e doença. Milhares, ou melhor, milhões de homens e mulheres têm ao longo de muitos anos assumido esse compromisso. Acho que não terá havido ninguém que ao assumir esse compromisso tenha pensado que um dia poderia aparecer um vírus que, ao contrário do compromisso, nos imporia o afastamento na doença!
Não poderia terminar hoje o meu artigo sem uma palavra de profunda gratidão por quem assumiu o compromisso mesmo com o risco da sua própria saúde e vida - a minha mulher. Contra todos os afastamentos não me deixou nem um momento que fosse. Mesmo no hospital, onde obviamente a sua presença não era possível, esteve sempre junto a mim, sempre a senti a ligar-me à vida. Não serão muitos os que se poderão gabar deste sentimento que não sei expor em palavras.
Fez ontem setenta e três anos que a minha querida e saudosa Mãe me pôs na terra. Todos os anos enquanto viveu sempre me deu os parabéns às 10 horas da manhã, que, dizia ela, era a hora a que eu tinha nascido. Ontem, fui eu que lhe falei a essa hora para lhe manifestar a minha gratidão por me ter trazido ao mundo e para lhe dizer que podia estar tranquila que a minha mulher cuidava de mim como ela sempre cuidou!...