Manual incompleto do utilizador de mau perder (e empatar)
Há toda uma arte em conseguir disfarçar a nobreza de caráter e a elevação de espírito; de modo tão realista que se chega a pensar ser algo natural, e não camuflagem
S ENDO esta história ficção em nada se autoriza o leitor que pense em pessoas concretas. Eu escrevo em tese, e não como reação a factos passados. E nessa qualidade quase académica, diria que há uma arte de mau perder que se subdivide em várias disciplinas diferentes, embora todas contribuindo para o objetivo final: a desculpabilização do fracasso. Compreendam que alguém que é sócio do Sporting teve oportunidade de estudar in loco (e quase diria em louco) esta capacidade fantástica.
As impressões que aqui deixo são naturalmente incompletas, uma vez que as possibilidades que esta doutrina abre são quase inúmeras, como veremos. Vão da simples recusa em falar ao insulto e expulsão dos que se incomodam com perguntas; do endeusamento próprio, ao apelo a que não se leiam certos jornais. É todo um manancial…
Comecemos pelo número de vezes que as equipas técnicas e jogadores suplentes se levantam do banco respetivo. Esse facto explica muita coisa. Nomeadamente quantas vezes se está irritado, quantas vezes uma jogada foi mal concretizada, ou muito bem concretizada; o número de ocasiões em que se falhou um golo e as vezes em que se celebra um golo. Com base num critério tão científico como este é natural que quando alguém faz um reparo objetivo, do tipo a equipa A pressiona demasiado os árbitros, é natural que se responda com um vídeo que demonstra que a equipa B se levanta muitas vezes do banco.
O mesmo se pode dizer das declarações finais. Um jogador, coração de ouro, verdadeiro desportista, para quem ganhar e perder fazem parte da competição, afirma que, para uma equipa que joga contra a sua, empatar é como vencer a Liga dos Campeões. Pode parecer que está mal disposto, a insultar a equipa contrária; é falso! O que ele quer dizer é que a outra equipa se comporta como quisesse ganhar a Liga dos Campeões e por isso mereceu vencer.
DO SALIVAR
I MAGINE-SE a tinta (sobretudo bites em formato de filme digital) que correria se (e quando) um jogador recusasse apertar a mão ao adversário no final de um jogo que, por sinal, nem teve grandes casos e ficou empatado. Dir-se-ia que era um comportamento mal educado, sobretudo se o jogador em causa fosse, porventura, filho de um campeão, hoje treinador; de um homem que tem como serviço à Pátria um hat trick contra a Alemanha há 20 anos, por exemplo. Mas, lá está, ninguém pôs a hipótese de ele apenas ter seguido o exemplo do ex-primeiro-ministro José Sócrates, quando deixou o seu ministro Luís Amado de mão estendida. Nenhum dos casos foi falta de educação. Pelo contrário, Sócrates tinha acabado de ganhar uma cimeira europeia e o jogador imaginário acabara de empatar. Por que razão se comportaram daquela forma? Obviamente porque, distraídos, não viram o parceiro de jogo, ou de Governo.
O jogador parece ter levado mais longe a sua atitude ao cuspir para o chão. É claro que, neste particular, não podia seguir o primeiro-ministro: ninguém cospe dentro de uma casa. Mas o jogador estava no relvado e o que mais se vê são jogadores a cuspir. Consequências do cansaço e não de qualquer falta de educação.
Até agora dediquei-me a factos cuja explicação pode ser muito simples. Em comum, porém, podem resultar da ideia de fingir má-educação, de modo a não permitir que o desporto perca o interesse. Indo a um exemplo real: se os jogos fossem todos tão desinteressantes, dentro das quatro linhas e dos minutos de jogo, como o foi o último FC Porto-Sporting, nada ficaria para dizer acaso estas pequenas coisas ou outras semelhantes não acontecessem (obviamente são encenadas e pré-combinadas, pois falamos de artistas com a mais elevada educação e enorme espírito artístico, envolvendo o sublime).
Veja-se, como pouco depois, o treinador, por pura discrição, não diz o que lhe disseram (e parece que ao resto do banco) artistas como Porro e Pedro Gonçalves. Mas eu, que não tenho o mesmo dever de silêncio e posso ser indiscreto, revelo: ao passar pelo banco do FC Porto, Pedro Porro disse: «Estão a fazer um jogo de se lhe tirar o chapéu.» Pedro Gonçalves, conhecido por Pote, afirmou: «Caros colegas, isto está difícil, mas acho que conseguiremos desatar este 0-0.» Foi tudo. O resto é pura encenação.
DA TÁTICA
F AZ parte do interesse do jogo e do fingimento do mau-feitio começar por elogiar o adversário que se vai enfrentar. Se for uma equipa a quem se pode ganhar, ou de quem secretamente se tem a esperança de ganhar, diz-se que é das que melhor futebol praticam. Isso valoriza muito uma posterior vitória, além de dar o toque de respeito que, na verdade, é o que caracteriza o treinador que faz uma antevisão do jogo.
Após o jogo, e caso este não tenha corrido de feição, devem fazer-se advertências várias para os perigos que o nosso futebol corre, quase todos provenientes do adversário. Este tipo semi-irado, que é obviamente fantasia, permite duas coisas: demonstrar aos adeptos que se está irritado com o desenrolar dos acontecimentos e como se poderia facilmente ter ganho a partida, não fossem as tais ocorrências que ameaçam a nossa equipa em particular e o futebol em geral. Claro que isto é fingido, mas eles sabem que faz parte do espetáculo. Por exemplo: pode criticar-se o facto de se berrar muito (é escusado chegar ao cúmulo da representação que é dizer «ai, ai, ai o quê? Levaste com um pau?», porque atuações destas estão reservadas a artistas ímpares); ou o facto de se fazer antijogo, consistindo essa peculiar maleita no facto de o adversário não permitir que a óbvia, embora azarenta, melhor equipa não conseguisse os seus objetivos.
Claro que um treinador que, por hipótese, fosse a uma dezena de pontos do primeiro classificado e empatasse com ele, poderia ficar contente. E dizer: lá vai a equipa à frente, distanciada de todos. Mas a nós nunca nos ganhou para o campeonato! Seria uma hipótese, mas para os adeptos do clube não seria suficiente. É preciso mais, porque esse empate pode desalojar alguém do segundo lugar e pôr lá a equipa que melhor joga em Portugal e que, por sinal jogou logo a seguir contra esse clube.
Enfim, condoo-me com a necessidade, que tantos têm, de disfarçar o seu bom-feitio natural. Jogadores, treinadores, dirigentes e outro pessoal de vários clubes sofrem horrores por ter de fazê-lo.
Espanta-me, pelo contrário, que haja quem entenda, como Rúben Amorim, que empatar é melhor do que perder, mas pior do que ganhar, e assuma que o adversário possa ter jogado melhor. Talvez por isso, por lhe faltar a arte, ainda não acabou o curso completo de treinador.
Maria José Valério
Faleceu ontem, vítima desta pandemia que nos rouba tanta gente, a voz do Sporting. Morreu no Hospital de Santa Maria, isolada, só, como morrem as vítimas de Covid. Lá para onde foi, que há de ser um céu em tons de verde, será recebida com a sua marcha: «Quer se possa ou se não possa, a vitória é sempre nossa! Viva o Sporting!». Rapaziada, ouçam bem o que ela disse… e o que ela cantou com a madeixa verde de que nunca abdicou. Ninguém uniu mais os sportinguistas do que esta senhora, que nos deixou aos 87 anos. Como disse o próprio clube, cantam os avós e os netos. Eu que o diga, que cantei com o meu avô há tantos anos e que já ensinei netos a cantá-la.
Redução da Liga
O presidente da FPF pôs a hipótese de se reduzir o número de clubes na I Liga e de reformular as outras competições nacionais. Um conselho só: seja o que for que faça, faça-o a sério e sem medo. Não temos país para um campeonato com 18 equipas; se retirar um terço ganham todos com isso: dinheiro, competitividade e balanço para a Europa.
Direitos de TV
O secretário de Estado falou na necessidade da centralização dos direitos televisivos. Mas pôs um horizonte tão longo que nem ele (que ainda é um garoto) pode ter a certeza de estar vivo na altura. Que tal antecipar em quatro anos, pelo menos, essa meta? Exige-o a sobrevivência do negócio e o fair play.