Leituras para um adepto no verão
O jornalista de A BOLA, António Simões, já tinha, recentemente, referenciado o regresso de Nelson Rodrigues, agora com um conjunto de crónicas reunidas por sua filha, Sónia, com edição Tinta da China.
O António está sempre atento ao que de novo surge na literatura e tem o bom hábito de ser um jornalista que lê, lê, mesmo, muito. Faz bem. Sempre aprendi com o Carlos Pinhão que um jornalista que não lê, nunca será um bom jornalista. Aliás, jornalista que não lê, é um absurdo. É como um cozinheiro que não pega num tacho.
O livro, que reune 70 crónicas do Nelson tem por título Brasil em Campo e é um conjunto de textos verdadeiramente recomendável para serem lidos nestes calores de verão, sem pressas e sem stress, por um adepto de futebol.
Nelson Rodriques, falecido em 1980 e considerado como o maior cronista de sempre do futebol e...do Brasil não era, ao que dizem, uma pessoa recomendável, mas era um autor genial, responsável por uma respeitável consolidação de uma literatura do futebol, que teve em Portugal uma expressão menos assinalada do que assinalável em autores como Carlos Pinhão, Mário Zambujal, Assis Pacheco ou Dinis Machado.
A questão sobre haver, ou não, uma literatura portuguesa de futebol é interessante, mas demasiado complexa para ser, aqui, defendida. Mas vale a pena apontar este Brasil em Campo como um exemplo que o leitor, em férias, deve aproveitar para algumas horas de humor e puro prazer.
É muito curioso irmos descobrindo, ao longo do livro, as incríveis semelhanças na idiossincrasia do povo brasileiro e do povo protuguês. Principalmente, naquela irresistível tentação de nos aproximarmos da insatisfação e do pessimismo. Reparem: um dia, o Brasil tinha jogado com o Paraguai e tinha vencido por 5-0, uma goleada que deveria encher de orgulho a nação brasileira. Em vez disso, Nelson só encontra gente de uma torcida sem gosto e sem alegria. Conta assim:
«...vejo por toda a parte brasileiros amargos e deprimidos. Mais adiante, esbarro num amigo lúgubre. Faço espanto: ‘Mas que cara de enterro é essa?’ O amigo rosna: ‘Estou decepcionado com o escrete!’ Caio das nuvens, o que, segundo Machado de Assis, é melhor do que cair de um terceiro andar. Instantaneamente, vi tudo: o meu amigo era ali, sem o saber, um símbolo pessoal e humano da torcida brasileira. Símbolo exato e definitivo.»
Outra personalidade comum ao adepto português é a que explica a facilidade com que se passa do oito para o oitenta, da depressão para a euforia. Veja-se essa realidade tão bem representada na prosa de Nelson Rodrigues sobre a vitória brasileira no Mundial da Suécia:
«Dizem que o Brasil tem analfabetos demais.E, no entanto, vejam vocês: a vitória final, na Copa da Suécia, operou um milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar a mão dos Pelés, dos Didis, todo o mundo aqui sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com x, iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: analfabetos natos e hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do lance a lance da partida até os anúncios de missa...»
Setenta crónicas de talento e humor que explicam o futebol, sim, mas, acima de tudo, o povo brasileiro. Tão bem explicam, que rapidamente nos apercebemos de que também são os portugueses que naquelas páginas estão tão bem representados e... fotografados.