'Intermezzo' outonal
1 Os sucessivos buracos entre jornadas do campeonato servem, entre outras coisas, para antecipar defesos e mercados. Vai daí, a semana passada, urbi et orbe, foi um primeiro desfilar de potenciais entradas e saídas. Jogadores, de quem ninguém havia alguma vez falado, são mirabolantemente promovidos a craques, a diamantes por lapidar (só não se diz de quantos quilates) ou a talentos em vulcânico desabrochamento. Eis, Janeiro em Novembro, para aquecer o entusiasmo entre jogos da Selecção Nacional, que, por sua vez, foram falados como se a pobre Lituânia e o esforçado Luxemburgo pudessem criar uma surpresa da estirpe Alverca. Como tão expressivamente se escreveu em A BOLA, só o jovem Bernardo Silva vale … dez Lituânias, mesmo que estas se encham de doces litanias pré-natalícias. Verdadeiramente, de todo o manancial que li e ouvi neste intermezzo outonal, só fiquei entusiasmado com o regresso de Jonas ao Seixal. Pelo menos, ainda que por fora, matei saudades do craque que tanto dignificou a camisola do Benfica.
Noutro âmbito, espero que tenha sido uma boa notícia a instalação do novo relvado da Luz. De facto, se tento ver as vantagens de mais uma paragem prolongada do campeonato, penso logo nisto (e na recuperação de Rafa). Espero que a relva holandesa se enraíze rápida e seguramente para uma boa estreia contra o Marítimo no dia 30. Neste encontro haverá, de facto, duas alterações: a do tapete verde depois da chicotada erval e a do novo treinador maritimista depois da chicotada psicológica. Confio que a primeira ganhe à segunda. E por aqui me fico quanto ao estado dos relvados na nossa principal competição, onde a regra tem sido a sua deplorável apresentação e a excepção é o limitado número de campos com relva apresentável. E não nos queixemos de intempéries e chuvas copiosas que não tem havido para justificar o injustificável num país campeão europeu.
2 Bernardo Silva - para mim, o actual melhor jogador português - é, também e acima de tudo, um jovem leal, humilde, sensato, elegante e correctíssimo. Mesmo assim, uma «comissão independente» (?) do futebol britânico decidiu suspendê-lo por um jogo, além de o ter multado em cerca de 60 mil euros e - imagine-se - de lhe impor uma «acção educacional individual» por causa de «conduta imprópria» de um tweet brincalhão e amistoso para um colega, que, desgraçadamente, continha uma «referência a raça»! O castigo, segundo li, terá sido bastante atenuado, pois que tendo embora a tal agravante de referência a raça, o tweet «não tinha intenção de ser racista ou ofensivo em nenhuma forma» (sic). Ou seja, Bernardo não foi racista, mas, desgraçadamente, referiu uma raça.
Onde isto chegou! O politicamente correcto está a criar dissimuladas formas de censura social, cada vez mais obsessivas e até ridículas, que têm o efeito boomerang de corroer o seu propósito legítimo. A aparente tolerância implícita na correcção política não é compatível com a intolerância policiesca dos seus talibans. A correcção política passou a ser uma perversa forma de controle da mente. Já não se diz o que se pensa, tem de se pensar o que se diz com a obrigação de se usar uma forma politicamente correcta. Como se pode constatar, uma das principais vítimas da correcção política levada aos extremos é o humor escrito e falado, pois que humor que pede licença não é já humor. Ridiculamente lamentável o caso Bernardo, ao mesmo tempo que se branqueiam (peço desculpa de ter conjugado o verbo branquear) atitudes escandalosa e condenáveis no mundo do futebol.
3 Mais uma inovação no futebol global: a supertaça espanhola vai ser concretizada (já não no modelo clássico de um jogo entre o campeão e o vencedor da Taça, mas com 4 finalistas), não em Espanha, muito menos na Catalunha, nunca em Ceuta ou Mellila e jamais no rochedo de Gibraltar. Onde, então? Na Arábia Saudita. Uma deslocalização que o dinheiro abundante naquelas terras sempre pode comprar. Neste caso, 50 milhões a distribuir generosamente pelos quatro clubes e pela Real Federação Espanhola. Uma festarola monetária que terá lugar em Gidá, no estádio Rei Abdullah, na primeira quinzena de Janeiro. Em nome do dinheiro, assim se desvirtua uma taça, curiosamente, chamada Copa do Rei, trocando-se de país, senão mesmo de monarca. Assim se mandam às malvas os adeptos fiéis dos clubes em confronto, para os trocar por uns autóctones sauditas que devem gostar tanto de futebol como eu gosto de enguias. Haverá quanto muito uma minoria de adeptos espanhóis que se podem dar ao luxo - em nome do sacrossanto dinheiro - de meter férias e ir às arábias divertir-se.
De entre os quatro clubes espanhóis, quem se deve sentir mais à vontade neste cenário é o Real Madrid. Aqui recordo, o que, em 2012, li de uma notícia que rezava assim: «O presidente do Real Madrid colocou a primeira pedra relativa ao projecto de construção de um complexo turístico-desportivo - Real Madrid Resort Island - orçado em 1.000 milhões de euros numa das ilhas dos Emirados Árabes Unidos. O clube espanhol prescindiu da cruz que há na coroa do escudo do seu emblema para evitar qualquer tipo de confusão ou más interpretações numa zona onde a grande maioria de população professa a religião muçulmana.» Esta minúscula cruz faz parte do emblema desde que, em 1920, o Rei Afonso XIII outorgou essa concessão real. Mais tarde, em 2017, li que «O Real Madrid retirou um dos elementos do seu símbolo em todo o merchandising vendido em alguns países árabes. A alteração diz respeito à eliminação da Cruz de Cristo, presente no topo da coroa do emblema madrileno.»
Assim, num tempo de marcas, o dinheiro tudo comanda, sem pátria e sem cor. Na era da ungida globalização, a história e os símbolos ou são passado e pouco mais ou são mutáveis em função do contexto cultural (leia-se, do proveito económico).
Ainda hoje me ponho a pensar como é que um treinador de nome Jesus trabalhou na terra de Maomé, sem ter sido obrigado a mudá-lo. Estou curioso em saber se os jogadores do Barcelona, Real Madrid, Atlético de Madrid e Valência serão, antes dos jogos da tal supertaça, revistados nas suas tatuagens ou símbolos religiosos à volta do pescoço.
4Por cá, há quem anuncie a supertaça televisiva da parvoíce. Em tão inchado, quanto grotesco oráculo se avisou na semana passada que Pizzi cometera um pecado mortal: o de, após marcar o golo da vitória em São Miguel, ter corrido desalmadamente e em vertiginosa alegria para dar um forte amplexo do tamanho do estádio ao director de futebol do SLB, Tiago Pinto, e nunca ter abraçado ou sido abraçado por Bruno Lage. As imagens foram repetidas inúmeras vezes. Pizzi e colegas, Pizzi e elementos do banco, Pizzi e Pietra, Pizzi e todos. Todos não, concluía-se sofregamente. Cadê o abraço dos abraços, isto é entre o marcador e o treinador? Não houve, disseram-nos, peremptoriamente. Logo, está-se mesmo a ver, estão de costas voltadas, não falam, não são solidários, o balneário está em crise e coisas que tal, Pizzi não tolerou ficar no banco num ou noutro encontro e Lage é um ingrato perante o melhor marcador e o jogador que mais resolve. Parece que as imagens deram lugar a uma arrebatadora análise e discussão entre os painelistas. Confesso que não tive paciência para tal jogo floral. Fiquei-me pela especulação/notícia da rebelião e do fogo pressuposto no falso fumo. Mas, por curiosidade, fui rever a transmissão dos momentos a seguir ao golo. E, de facto, não vi nenhum abraço entre os dois. Depois, passei pelo mesmo momento na Sport TV +, que não transmite os jogos, mas está muitas vezes com câmaras focadas nos bancos. E foi lá que vi o bom alvoroço do banco encarnado a seguir ao golo. Por acaso, a câmara estava no exacto momento do golo a focar o treinador. Toda a gente se levantou, saltou e correu, excepto Bruno Lage que, como sempre, não exterioriza a alegria, nem entra em corridas loucas e histrionismos que são futebolisticamente mais comuns e correctos. A câmara continuou a filmar e vi, então, o abraço entre Lage e Pizzi. O tal que havia sido negado. Assim se propaga, não inocentemente, uma fake news. Afinal não havia indícios de Revolta na Bounty para meu sossego. Vale tudo para tentar desestabilizar o Benfica.