Iker, ou a lei da relatividade humana
Poucas horas depois de ter visitado o seu marido no Hospital, a mulher de Iker Casillas, Sara Carbonero, com o seu sentido jornalístico do valor da expressão e da palavra lembrava uma amiga que lhe tinha dito: «a vida, por vezes, tem uma maneira estranha de nos lembrar da importância de estarmos vivos». A frase passou nos intervalos da chuva de perguntas dos jornalistas, que não se compadeceram, nem mesmo quando Sara lhes lembrou que dentro do carro que conduzia estavam os miúdos, os filhos de Iker Casillas.
A verdade é que o insólito de uma vulnerabilidade imprevista num ídolo do futebol, que parecia respirar saúde por todos os poros e ter ainda muita, em sobra, para dar e vender, criou um sentimento muito latino de solidariedade transversal. Bastou que a notícia do enfarte do miocárdio do famoso guarda-redes do FC Porto se propagasse mais rápida do que a velocidade da luz para que de todo o lado surgissem sinceros votos de rápido restabelecimento. Benfica e Sporting foram dos primeiros a reagir oficialmente e, muito à maneira portuguesa, sempre algo indisciplinada, quando não, mesmo, caótica, a resposta, amável, quase diria amiga, foi dada, em nome de todos os portistas, não pelo presidente do clube, não pela administração da SAD, mas pelo líder da claque dos SuperDragões.
De repente, o futebol bélico e arruaceiro que parecia instalado para todo o sempre no penoso palco do futebol português, transformava-se, como que por encanto, num exemplo de valores, de solidariedade, de princípios que tinham por base a importância suprema da vida humana.
De facto, como dizia Sara Carbonero, a vida tem uma forma estranha e, por vezes, até brutal de nos explicar que há uma lei da relatividade humana que importa não esquecer, nem ultrapassar nos seus riscos vermelhos. Pode-se falar de off-sides e de penaltis da forma mais talibânica, mais irracional, mais cega; pode-se ser estupidamente sectário no clubismo mais primário, mas tais manifestações, além de se alimentarem de audiências compradas a todo o custo, esbarram com estrondo num momento assim em que se marcam tão claras diferenças entre aquilo que é o acessório de umas quantas vidas pobrezinhas de espírito e o essencial de todas as vidas, sejam elas ricas ou pobres, sejam elas esclarecidas ou brutalizadas.
Neste quadro, importa dizer que a pergunta provavelmente mais repetida sobre se Casillas ainda regressará, ou não, às balizas, é uma pergunta, não direi irrelevante, mas uma pergunta desnecessária. Em primeiro lugar, porque quem pergunta sabe que ninguém pode responder; em segundo lugar porque nem mesmo o próprio Iker tem vontade de dar resposta, mesmo que fosse clinicamente possível dizer que a recuperação será total e não deixará sequelas, nem obrigações que interditem a alta competição desportiva, coisa que até a um leigo parecerá improvável.
Seja como for - e isso é o que mais importa dizer - é sempre o homem que está em causa e não o futebolista. E não se pense que alguma coisa sobre esta visão essencial do assunto se alteraria caso Iker Casillas não fosse um extraordinário jogador em final de carreira, bem de vida, com títulos europeus e mundiais conquistados, e fosse, antes, um jovem e promissor futebolista, que visse cruelmente interrompida a sua vida profissional.
Pinto da Costa, sempre na sua visão de regionalizar tudo e todos, disse: «Iker é Porto!». A seiscentos quilómetros de distância, alguém dirá: «Iker é Madrid». A verdade inteira é que Iker é um ser humano que ao longo da sua vida de enorme exposição mediática soube merecer o respeito de todos os que dirão: «Iker é um Homem».