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OPINIÃO04.01.202305:30

Ronaldo vai jogar (meio ano?) na Arábia Saudita e depois talvez regresse à Premier e à Champions para, então sim, despedir-se num palco à sua dimensão

RONALDO apresentou-se aos adeptos do Al Nassr com estádio cheio e teve direito ao tratamento VIP dispensado às celebridades que visitam o reino saudita. Falou bem, foi direto ao assunto e nem se engasgou com a beleza da maestrina de cerimónias que parecia uma versão árabe da atriz Angelina Jolie. Percebeu-se pelo que disse que já interiorizou o que esperam dele e que, imagino, deve ter sido minuciosamente negociado antes da assinatura. Mostrei na Revista de Imprensa Internacional de A BOLA TV como os jornais dos países da península arábica (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Catar, Barém, Kuwait, Iémen e Omã) noticiaram a chegada da lenda a Riade. Havia ali um orgulho indisfarçável, talvez o eco de 100 milhões a pensarem o mesmo: agora ele é nosso! O português é, de longe, o desportista mais famoso contratado para jogar por um clube árabe. Creio que enquanto estiver lá, Ronaldo vai ser muito mais do que a estrela da liga saudita - vai ser a estrela maior de toda a península arábica, com uma luminosidade mais forte que a dos outros monarcas reinantes.

O diário Marca teve acesso ao contrato que Cristiano assinou com o Al Nassr e revelou a importantíssima cláusula de fuga que permite ao astro português regressar à Premier e à Champions dentro de meio ano. Basta que o Newcastle United termine num dos quatro primeiros lugares de Inglaterra (neste momento está no 3.º lugar). Nesse caso, o Al Nassr pode emprestar Cristiano ao clube inglês. Isto só é possível porque o proprietário do Al Nassr e do Newcastle são uma e a mesma pessoa: o Fundo de Investimento Público Saudita, que é manejado por Mohammed bin Salman, o poderoso príncipe herdeiro e primeiro-ministro do reino saudita.
Este homem, quinto filho do rei Salman bin Abdulaziz, tem gasto muito dinheiro na alteração da imagem da Arábia Saudita e na sua promoção como um estado moderno, reformista e voltado para o futuro. O desporto é um dos veículos utilizados para passar essa mensagem: Fórmula 1, rali Dakar, boxe, golfe e mais recentemente futebol (Newcastle e agora Cristiano) integram a colossal carteira de investimentos da Arábia Saudita subordinada à visão que bin Salman apresentou para o país em 2016 e que nomeou Vision 2030. Esse ambicioso programa visa transformar as estruturas sociais, económicas e políticas do conservador reino saudita e envolve uma série de projectos mais ou menos faraónicos em áreas facilmente mediatizáveis como o meio ambiente, o desporto, o turismo, o património cultural e até a exploração espacial.

Não ficaria admirado se a imagem de Cristiano - uma marca global - viesse a ser utilizada para publicitar a megacidade futurista Neom, que bin Salman planeia construir à beira do Mar Vermelho, na fronteira com o Egipto e a Jordânia. Uma cidade de fantasia com sensivelmente a área da Bélgica (!) e um custo previsto de 550 mil milhões de dólares.

A contratação de Cristiano, mesmo que este só venha a jogar seis meses pelo Al Nassr, deve ser entendida como uma excelente jogada de propaganda do regime saudita, dado o mediatismo e a popularidade global do futebolista português, ainda a maior estrela do desporto mundial. Ronaldo tem mais de 500 milhões de seguidores só no Instagram e essa gigantesca base de apoio já começou a mexer-se em favor do desconhecido Al Nassr, que num par de dias passou de 800 mil seguidores para mais de 6 milhões! Foi certamente essa grandeza, essa dimensão global única, essa certeza de retorno/ visibilidade, que levou o crown prince Mohammed bin Salman a oferecer a Cristiano o maior contrato da história do desporto.  

Considerado um visionário sem escrúpulos por Ben Hubbard, o jornalista britânico que escreveu uma excelente biografia dele em 2020, um best seller intitulado «Blood and Oil - the Rise to Power of Mohammed Bin Salman» (Sangue e petróleo - a Ascensão ao Poder Mohammed Bin Salman; cuja leitura recomendo vivamente), Mohammed bin Salman percebeu, observando o empreendedorismo dos vizinhos e rivais Catar (organização do Mundial; compra do PSG) e Emirados Árabes Unidos (compra do Manchester City) que o desporto é mesmo uma arma política eficaz e tornou-se um praticante do chamado sportswashing, como a Rússia de Putin, a China de Xi Jinping, a Bielorrússia de Lukashenko, o Catar dos Al Thani e os Emirados dos Al Nahyan. Como tantos outros regimes agora e no passado (quem esquece os milagres desportivos da União Soviética e da RDA; a Argentina da ditadura militar campeã do mundo em 1978…; o Portugalzinho de Oliveira Salazar que orgulhosamente recusou deixar sair para Itália a jóia da coroa, Eusébio…) o regime saudita tem feito da organização de grandes eventos desportivos (lembro, por exemplo, que a Supertaça de Itália e de Espanha disputam-se ali) um poderoso branqueador dos aspetos mais sombrios do regime.

Goste ou não, Cristiano fará parte dessa narrativa durante os próximos meses. Se puder ajudar ao esforço de  abertura e modernização que realmente também existe no consulado de bin Salman (e que tem sido, regra geral, olimpicamente ignorado ou menorizado pela Imprensa ocidental), então Ronaldo terá feito algo relevante pela população local (não passou despercebida a referência dele às mulheres sauditas) antes de regressar à Europa para, então sim, despedir-se num palco mais apropriado à sua dimensão. 

PS 1 — A única estranheza na cerimónia de ontem foi não ver Jorge Mendes ao lado de Cristiano. Não deixa de ser sintomática a ausência do superagente (e compagnon de route de toda a carreira de CR7) no maior contrato assinado pela lenda até à data. Confirma-se que alguma coisa correu mal nos últimos meses. Muito mal, mesmo. Haverá sempre duas versões; espera-se é que o divórcio não descambe em lavagem pública de roupa suja. Chegam-nos sinais, aqui e ali, não muito animadores.

PS 2 — «Não é o fim da minha carreira vir para a África do Sul», disse a certa altura Ronaldo. Isso, ver-se-á. Indiscutível é que antes há uma paragem na Arábia Saudita.