Homenagem ao leitor desconhecido
EM boa verdade não nos conhecemos pessoalmente, mas isso é o que menos importa. Há muitos anos que usamos uma plataforma que, ao que parece, caiu em desuso. Porque escrever caíu em desuso e ler em desuso caíu.
Há uns dias, encontrei um monte de postais que eu, ao longo de décadas, fui enviando, de todos os cantos do mundo, para as minhas filhas e reparei que a Catarina os guardara porque sempre teve um gosto especial pela cultura e pela preservação de documentos antigos. Ora, todos estes pequenos retângulos de papel tinham, em comum, três originalidades muito particulares: a primeira são os selos (não tenho a certeza de que os mais novos saibam o que são selos) de todo o mundo; a segunda, é que têm uma face escrita, com textos sucintos, mas que dizem mais hoje do que naquela altura aparentavam dizer; a terceira, é que, na outra face, tinham uma surpreendente fotografia dos sítios e dos lugares por onde passava. Monumentos famosos, paisagens idílicas, em alguns casos, apenas a imagem de um avião, que as hospedeiras, gentilmente, me tinham oferecido durante o voo.
E dei comigo a pensar que há muitos anos que não tenho uma fotografia. Tenho imagens armazendas em disco ou em pen, mas, sinceramente, não sei procurar o que por vezes quero encontrar. Ou seja, o que lhe queria dizer, caro leitor, é que, como você, eu sou um homem do papel. Eu sei que a única coisa de papel na moda é La Casa de Papel, um episódio que a minha neta vê na Netflix e que eu já perdi a conta do número de série em que vai. Porém, eu continuo a ser um adorador do papel. Um jornal, em papel, é um amigo que temos em casa, que nos visita, tem um cheiro muito próprio a entidade viva, tem uma personalidade a que nos habituámos, e, sobretudo, tem um corpo, tem braços que nos abraçam e um rosto que nos sorri.
Claro que podemos ler os mesmos textos que, agora, por serem tão despersonalizados, chamamos apenas de conteúdos e que cheiram e sabem todos ao mesmo. O problema, se é que isto é um verdadeiro problema, é que um jornal em papel é mais do que a soma dos seus textos e mais ainda as imagens, que deixaram de ser fotografias, porque as fotografias são imagens com alma e as imagens de hoje são fotografias desalmadas.
Provavelmente, seria por causa do cheiro e do sabor do papel que os textos eram textos e, agora, fora do papel, são, apenas, conteúdos.
O que eu acho é que os textos, com cheiro, com sabor, com caracter, apetecem ler. Os textos fora do papel só apetecem ver.
Não digas disparates, alerta a minha neta, que lê e vê todos os conteúdos que lhe parecem interessar no ipad e no iphone. Silencio a minha razão pelo custo de não ser considerado, desde já, um caso perdido. E, no entanto, segredo, como Galileu, que os jornais em papel ainda se movem, esperando que a santa inquisição da pós-modernidade e da pós-verdade não me venha calar com uma qualquer ação cibernética.
Portanto, caro leitor, neste texto que, provavelmente, não fará sentido no século XXI, eu apenas lhe queria prestar a minha sincera e singela homenagem. A si, o leitor desconhecido, neste tempo em que os jornais em papel quase se tornaram clandestinos e que, mesmo assim, contra todas as tempestades desta dramática atualidade, ainda se permite à heroica resistência de procurar um ponto de venda, um género de trincheira em tempo de guerra, e pedir, humildemente, como sempre, o seu jornal, seu companheiro de anos e anos de uma solidão muito íntima, que só quem ainda sente paixão de ler um jornal em papel conhece e disfruta.