‘Hipótese leonina’!...
Recuando aos meus tempos na Faculdade de Direito de Lisboa, recordo as provas escritas dos exames que eram sistematicamente uma dor de cabeça para mim. Com efeito, eram colocadas, nessas provas, hipóteses de situações tão complicadas que dificilmente se aceitava se poderiam verificar todas ao mesmo tempo. Eram as chamadas hipóteses académicas!
Só me preocupavam esses exames escritos na medida em que eram necessários pelo menos sete valores para ir à oral. Quanto ao resto, como não ligava muito às notas finais, consolava-me a ideia que, muito dificilmente, na minha vida de advogado, me apareceriam casos semelhantes àqueles. E assim foi, durante estes quase quarenta e seis anos de profissão e decorridos cinquenta anos sobre esses tempos académicos!
Não me passava pela cabeça que, tantos anos depois, teria de enfrentar na prática uma hipótese académica que é, neste caso, uma hipótese... leonina! Ainda por cima, num ambiente de terror intelectual, verbal e físico. Uma revolução jurídica no meio de uma guerra civil.
Nos exames a que me referi, tinha três horas para resolver os problemas colocados, pelo que seria natural, às vezes, não os conseguir resolver todos ou mesmo não resolver nenhum, com o necessário reflexo na nota. Na hipótese leonina já tive mais que tempo para encontrar uma solução (na minha cabeça, claro...) para esta crise que se arrasta, pese embora a criação a cada dia, ou mesmo a cada hora, de factos que nem o mais perverso professor de direito se lembraria para baralhar mais a hipótese colocada numa prova escrita!
Olho para a crise do Sporting com uma revolta e dor semelhantes às que senti perante a agonia e morte de familiares e grandes amigos. O sentimento da impotência perante a morte é algo que me confunde e perturba. Assistir à crise e agonia em que o meu clube está mergulhado é algo que me enraivece, porque o testamento de meus pais não continha bens materiais assinaláveis - e ainda bem -mas princípios e valores pelos quais eu deveria lutar sempre até ao final dos meus dias, para com a consciência completamente tranquila os transmitir aos meus filhos. É com estes princípios e valores que a crise do Sporting Clube de Portugal deveria ser resolvida. Não é isso que está a acontecer, seguramente por culpa de todos nós. E quem não se sentir culpado que atire a primeira pedra!
Não se ligando a princípios e valores, nem atendendo aos interesses do Sporting, entrou-se numa batalha campal do direito que francamente penso ter me matricular outra vez na faculdade de direito para ver se percebo alguma coisa do que se está a passar. E passo a pensar em voz alta, para os meus estimados leitores.
Num determinado dia desta crise iniciada com assembleias gerais para alterações de estatutos que acabaram com a confirmação de uma direção que agora, bem ou mal, se quer destituída, também por muitos que antes a confirmaram, verificou-se a cessação dos mandatos do Conselho Fiscal e Disciplinar por força da renúncia da esmagadora maioria dos respectivos titulares (apenas um o não fez) e da Mesa da Assembleia Geral em razão da renúncia do Presidente e Vice-Presidente e restantes membros, sendo certo que os estatutos apenas exigem a renúncia daqueles dois.
A renúncia de qualquer membro dos corpos sociais, nos termos estatutários, é apresentada ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral, salvo se este for o renunciante, caso em que é apresentada ao Presidente do Conselho Fiscal e Disciplinar. Parece-me assim óbvio que a renúncia do Presidente da Assembleia Geral não produziu qualquer efeito porque ela teria de ser apresentada ao Presidente do Conselho Fiscal que por sua vez apresentou a sua renúncia ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral. Uma situação curiosa e engraçada como quadro de uma revista à portuguesa, mas intolerável numa associação com a grandeza do Sporting.
Dizem porém os estatutos que, se a renuncia, individual e colectiva, constituir causa de cessação do mandato da totalidade dos membros do órgão - e é o caso - a renuncia só produzirá efeito com a tomada de posse dos sucessores, salvo se entretanto for designada a comissão de gestão (situação que se não verificou) ou de fiscalização, ou ambas.
Os pressupostos da comissão de gestão não se verificam; quanto à comissão de fiscalização, verificado um dos pressupostos para a sua designação, esta é da competência do Presidente da Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal, Jaime Marta Soares, goste-se ou não da personagem. Qualquer outra entidade ou órgão que usurpe esta competência, é tornar o Sporting Clube de Portugal num circo, o que é inadmissível e imperdoável.
Diz o artigo quarenta e dois dos estatutos do SCP que «na Assembleia Geral, composta pelos sócios efectivos no pleno gozo dos seus direitos, e admitidos como sócios do clube há pelo menos doze meses ininterruptos e que tenham, de acordo com a lei, atingido a maioridade, reside o poder supremo do Clube». Com as recentes decisões de transferir para si as competências da assembleia geral, o Conselho Directivo assume o poder supremo do clube, o que não se pode admitir, porque o governo também não pode ultrapassar a Assembleia da República, onde estão os representantes do povo português. Até hoje não qualifiquei, nem qualifico, o comportamento dos membros do Conselho Directivo que entendem não apresentar a sua demissão. Limitei-me sempre a apelar a um certo bom senso, que permitiria resolver os problemas de uma forma mais tranquila. Respeito, no entanto, a sua decisão, e não cometo a injustiça ou indelicadeza de reduzir a atitude a mero apego ao poder e à remuneração do seu exercício. Não admito, porém, que o poder caia na rua, porque os sócios do Sporting não merecem tal comportamento.
Com uma coisa todos parecem estar de acordo: a palavra tem de ser dada aos sócios. E tem de ser dada aonde e para quê?
Aonde a resposta é óbvia - em Assembleia Geral. E para quê? Uma assembleia extraordinária para destituição do Conselho Directivo, designadamente a marcada para o próximo dia 23 ou uma assembleia geral eleitoral? Duvido que aquela assembleia extraordinária se venha a realizar, por diversas razões que me abstenho de enunciar.
Defendo, portanto, a realização de uma assembleia eleitoral. E como não é possível fazer eleições totais, isto é, para todos os órgãos, façam-se apenas no que respeita aos órgãos demissionários, como aliás pretende o Conselho Directivo. Bruno Carvalho já tem os seus candidatos, que aliás se devem apenas considerar como tais para poderem ser respeitados por parte dos milhares de associados do Sporting. A oposição ou oposições designarão também os seus candidatos. Os sócios do Sporting decidirão e, seguidamente, poder-se-ão tirar ilações dessa decisão soberana, designadamente, de que lado está a vontade da maioria.
Não vejo outra solução legal prática que não seja esta. Leva o seu tempo é certo. Mas a baralhada jurídica em que o Sporting foi envolvido, transformada em batalha jurídica, arrastar-se-á durante meses ou anos e levará o clube e a SAD a uma situação insustentável e deprimente.
Estava terminando o artigo, quando soube da rescisão de Rui Patrício. Não tenho um conhecimento aprofundado e reflectido do conteúdo da respectiva carta, mas disseram-me que Bruno de Carvalho apelou à reflexão do Rui com vista á revogação da sua decisão. É uma hipótese académica. A hipótese leonina, verdadeiramente leonina, é a reflexão de Bruno de Carvalho sobre o problema que criou. As hipóteses académicas têm sempre uma solução legal. A hipótese leonina só tem uma solução: amar o clube!