Grandes naus!...

OPINIÃO25.03.202205:30

Devo avisar que este artigo foi escrito antes do Portugal-Turquia que ontem se jogou

N OVIDADE na SAD do Benfica com o anúncio da constituição de uma comissão executiva (composta por apenas quatro administradores) e a criação de dois lugares de CEO, entregues, a partir de agora, ao presidente Rui Costa e a Domingos Soares de Oliveira. Forma, compreensível, de Rui Costa reduzir o espaço das grandes decisões e do essencial da estratégia, e, ao mesmo tempo, como é indisfarçável, de fintar a chegada à SAD de um administrador representante do acionista José António dos Santos, conhecido «rei dos frangos», tão íntimo de Luís Filipe Vieira.
Naturalmente, ninguém pode saber ainda muito bem no que vai resultar toda uma nova dinâmica na direção da SAD benfiquista. Como sempre, é preciso dar tempo ao tempo e deixar que o tempo ajude, no tempo próprio de muitos destes complexos tempos, a definir e a revelar as linhas com que Rui Costa quererá coser o futuro deste seu primeiro mandato como presidente da maior instituição desportiva do País.
Continua Rui Costa a merecer o benefício da dúvida dos benfiquistas? Claro que continua a merecê-lo, como qualquer executivo com pouco tempo de liderança, e Rui Costa ainda nem meio ano (!!!) completou como presidente do Benfica, pelo que seria absolutamente incompreensível (e até tremendamente injusto) pedirem-se contas e exigirem-se balanços quando esta procissão benfiquista ainda nem sequer saiu do adro.
Ali bem próximo, do outro lado da segunda circular de Lisboa, no rival Sporting, por exemplo, também um novato na liderança, Frederico Varandas, andou, no primeiro ano e meio (de setembro de 2018 a março de 2020), a cometer, desportivamente, alguns erros atrás de alguns erros, até fazer bingo (e ninguém pode, hoje, deixar de lhe tirar o chapéu por isso!...) com a contratação de Rúben Amorim. Recordo que o presidente leonino tomou, primeiro, a decisão de abdicar de José Peseiro, com o argumento de não ser «o treinador» escolhido pelo novo presidente, recorreu depois, ainda que provisoriamente, a Tiago Fernandes, antes de assumir a opção pelo holandês Marcel Keizer, a que se seguiu, por quatro jogos, Leonel Pontes, antes da nomeação, de corpo inteiro, de Jorge Silas, que viria, porém, a durar apenas meio ano e um total de 28 jogos. À sexta decisão, Varandas lá acertou em cheio!
Dito isto, parece evidente a necessidade de os benfiquistas serem pacientes com Rui Costa, independentemente de poderem, alguns, considerá-lo ainda menos bem preparado para a liderança de um clube com a dimensão, a grandeza, a história e o impacto do Benfica, porque essa grandeza e esse impacto exigem, na realidade, a meu ver (goste-se ou não) uma liderança muito firme, por vezes até implacável, quer na forma como se defende o clube, quer na forma como se impõe e escrutina a disciplina, o funcionamento e a produção de toda a estrutura, quer no modo como se tomam as decisões capazes de impedir que um clube como o Benfica, ou qualquer outro dos grandes, se desumanize na sua organização empresarial, perca o foco da paixão e das emoções, e deixe de saber olhar para o essencial (a relação emocional que o desporto de competição desperta e promove) a troco de um alegado profissionalismo e tecnocracia, como se num clube grande como o Benfica, a raça, a paixão e a cultura do clube pudessem, por obra e graça do Espírito Santo, ser totalmente substituídos pela burocracia e pelos métodos científicos com que a tecnocracia faz a gestão dos recursos.
Já o escrevi-o, uma vez, mas recupero e sublinho, o que na minha opinião é absolutamente incontornável: num grande clube, sobretudo de futebol, como é o Benfica, os métodos estritamente empresariais só fazem sentido até se chegar às contas; das contas para lá, o que manda é o espírito, a cultura, a sensibilidade, a paixão e a dedicação, e a experiência e o conhecimento de uma atividade (desporto profissional, e futebol em particular) que não é comparável com nenhuma outra atividade económica ou empresarial e que vive, muito, da relação emocional estabelecida entre adeptos e equipas.
Os que teimam em colocar as coisas de pernas para o ar correm riscos enormes. Desumanizam os próprios atletas profissionais, tornando-os quase avatares de uma indústria - cibercorpos digitais programados para o objetivo do negócio - e, não sei se pior ainda, destroem as ligações afetivas ao verem os adeptos como clientes.
O que os benfiquistas, aos quais Rui Costa pedirá, e bem, paciência, esperam, porém, é que o mesmo Rui Costa, que viveu uma vida como profissional do futebol, e foi estrela de primeira grandeza, saiba, sem perder o sentido da razão, escutar a sensibilidade e dar ouvidos ao coração! Não será, certamente, coisa fácil, sobretudo se a nau parece ter, como tem, a dimensão de um Titanic, e as tormentas são, regra geral, como se tem visto, proporcionais à dimensão da nau!
 

 

A propósito da personalidade de Rafa, desse lado distante e tão frio, a roçar quase o insensível, e tão pouco empático e afetivo, do talentoso jogador do Benfica (e só a propósito disso), juro que me lembrei esta semana de um jogador (absolutamente genial e um dos melhores futebolistas da história) que jogava quase sempre a sorrir, que se divertia e divertia os adeptos, e que transmitia como ninguém a paixão, emoção e alegria de que deve, essencialmente, ser feito o futebol - Ronaldinho Gaúcho, como ficará imortalizado, que completou, na última segunda-feira, 42 primaveras.
Admito que a genialidade de Ronaldinho o tenha tornado ainda mais bem-disposto do que o mais bem-disposto do comum dos jogadores. E também admito que ser, ainda hoje, o único jogador da História a ganhar um Campeonato do Mundo, uma Liga dos Campeões, Uma Taça dos Libertadores, uma Copa América, uma Taça das Confederações, e, por fim, ter sido também Bola de Ouro, façam de Ronaldinho uma personagem apenas com razões para sorrir. Ele podia até, circunstancialmente, não festejar um golo, mas exprimia-o sempre com tal fervor que jamais transpareceu a falta de comunhão que Rafa exibiu, na Luz, após o extraordinário golo que escreveu para a história dele e para a história de todos nós, que o vimos. Rafa tem talento, sim, mas parece muitas vezes - pelo menos parece - fazer do futebol a experiência profissional de um emprego comum. E o futebol é tudo menos isso.

I MPOSSÍVEL não nos sentirmos tocados por mais uma magnífica vitória de Miguel Oliveira na Fórmula 1 do motociclismo. A molhada e chuvosa serenata do piloto português revelou-nos uma espécie de Ayrton Senna das motos, com Miguel Oliveira a seguir um pouco a linha de precisão e de risco que Ayrton tão memoravelmente exibia, como especialista na condução à chuva, que muito bem recordo por ter assistido ao vivo, no Estoril, por exemplo, à primeira vitória do lendário brasileiro na Fórmula 1, numa tarde de abril de 1985, sob chuva torrencial e quase permanente, ao volante do inesquecível Lotus negro que durante anos fez as delícias de fãs como eu. Miguel Oliveira é um grande piloto, nenhuma dúvida. Falta-lhe conseguir ser grande mais vezes para se tornar, por fim, o campeão por que todos torcemos.

 

PS: Maria Stepanova, poetisa, romancista e jornalista russa de quase 50 anos, escreveu corajosamente, em Moscovo, um artigo para o jornal britânico ‘Financial Times’, um dos mais credíveis e respeitados título da imprensa mundial, no qual exprime uma intensa, dramática e sensível visão sobre a inconcebível operação militar de Putin na soberana, independente e democrática Ucrânia. Feroz crítica da ação do líder russo, Maria Stepanova escreve que, mais uma vez, «alguém quer organizar o mundo como bem entende, sem se importar com o que a humanidade pensa sobre isso», e compara o «agressor nesta guerra injusta» com o autor de um «livro», no qual tudo é «controlado pelo criador». Com a devida vénia e profunda admiração pela coragem de Maria Stepanova nestes tempos tão complexos, atrevo-me, numa tradução pessoal, a seguir algumas linhas mais do pensamento expresso pela escritora russa.
«(…) Este livro em particular tem um autor ruim. Ruim em todos os sentidos, como pessoa e como escritor com pouco interesse nas suas próprias personagens. Ele não se importa se elas sobrevivem ou morrem (…), e, definitivamente, não está interessado em reconhecer-lhes as liberdades. A única coisa que lhe interessa é sua própria autoria, a afirmação de sua vontade e o seu controlo do texto e dos acontecimentos. É isso que ocupa Putin neste momento: a promulgação de sua vontade pessoal, a tentativa de reescrever a história da Ucrânia e da Europa, para mudar o nosso presente e determinar o nosso futuro». «Pode-se dizer que essa é a essência de toda a ditadura e a lógica de todo o ditador», reflete Maria Stepanova, lembrando, de forma suficientemente crua para nos impedir de ficarmos indiferentes, que «os demónios alimentam-se do sofrimento e do desespero humanos».
É, na verdade, o demónio, tão cruel, de Putin que nos assombra a todos e que tão depressa, creio, não nos deixará em paz. Parece mentira como a Liberdade, poética, que todos desejamos na vida, pode, afinal, tornar-se, ainda hoje, num testamento de horrores!