Fizeram a revolução sem me avisarem
Dizia José Eugénio Dias Ferreira, na última Quinta da Bola: «Mais vale confinado do que finado». Acho que foi das frases mais sensatas e humoradas que ouvi nos últimos dois meses. De facto, trata-se de uma escolha óbvia entre dois males. Entre um mal definitivo e, tanto quanto possível, adiável e um mal transitório e, se formos espertos, inadiável.
É por isso que a discussão sobre as comemorações do 25 de Abril se tornou ridícula, de tão despropositada. Passam, hoje, precisamente, quarenta e seis anos do dia em que um padeiro me bateu à porta, para me acordar de um sono demasiado breve, após uma madrugada de véspera de saída d’ A BOLA e me deu a notícia: «Parece que há uma revolução». E eu que, na altura, figurava, em part time, nos quadros do exército português, esfreguei os olhos e perguntei: « Dos capitães, ou do Kaúlza?». E o padeiro, assim a modos que parvo, olhando para mim como se deve olhar para um extraterrestre: «E eu sei lá. Só sei que os militares estão na rua e que mandam toda a gente ficar em casa».
Pois foi assim. Fizeram a revolução sem me avisarem. Tinha andado esfalfado, no 16 de Março, num pelotão designado por «politicamente suspeito», em Mafra, à espera de ordens, que nunca chegaram, para tomar parte ativa na revolução que nos era segredada como estando quase e falhava a História por um mês e pico.
Enfim, tomei um duche, vesti a farda, peguei no carro e fui direito ao quartel, na avenida de Berna, onde é hoje a Universidade Nova. Passei por dois pontos de controlo, explicando que era fotocine e que me ia apresentar na unidade que me estava destinada, bati à porta da guerra, que estava de portões de ferro fechados, dei conta de quem era, fui à sala dos oficiais, esperei por novas, talvez me dessem ordens para ir para o Carmo, ou para São Bento, quem sabe se Palácio de Belém, e foi, por isso, com alguma desilusão minha, que o oficial de dia me veio comunicar que o comandante não me queria na revolução, pelo menos para já, a coisa estava controlada, tinham lá, no Quartel, os spinolistas, que tinham acabado de ser libertados do forte da Trafaria, não havia nem cama nem lugar à mesa para mais um oficial, que o melhor era deixar o número de telefone, voltar para casa e, se precisassem de mim, que haviam de me telefonar para voltar para a guerra. Foi o que fiz, meti o carro na garagem, deixei a G3 no porta bagagens, e fiquei à espera que o telefone tocasse. Não tocou.
A única coisa que me alegrava, naquela altura, é que já tinha a certeza de que a revolução não era de extrema direita, liderada pelo general Kaúlza de Arriaga, era a revolução democrática, do Movimento dos Capitães.
Ora, mesmo sem comemorações, ou só com chatas comemorações oficiais, eu sei o que comemoro hoje e quanto continuo a agradecer aos capitães de Abril. Por mim, evidentemente, apesar da frustração de não me terem achado revolucionariamente necessário e de nem me terem avisado para ouvir o E Depois do Adeus, do Paulo de Carvalho, ou a Grândola, do Zeca, nem sequer o aviso secreto do meu amigo João Paulo Diniz; mas, muito principalmente, por abrir as luzes de um pobre país às escuras, criando condições, apesar dos sobressaltos revolucionários, para tornar um país analfabeto e ignorante, num país que ganha, enfim, por mérito próprio, o respeito internacional que é devido a um povo maior, crescido, responsável, que percebe, em tempo de confinamento, que a liberdade obriga ao respeito pelo outro e, por isso, nos obriga a este tempo de ficar no quartel, que é o lugar de combate de cada uma das nossas casas.