Félix consolado e Félix desolado

OPINIÃO25.06.201904:00

1 - Este Contador da Luz chega, hoje, às 100 crónicas. Um número centenário centrado, quase totalmente, num meu homónimo de apelido: João Félix. Entre ele e eu distam 51 anos e 214 dias de tempo de vida, ele que, curiosamente, faz anos no mesmo dia outonal em que o meu Pai, de quem recebi o apelido, também fazia. Com este jovem na crista da onda mediática, volta a questão da pronúncia do apelido. Félix deve pronunciar-se como se acabasse em s e não em cs, respeitando, assim, a origem da palavra dos tempos do início da formação da língua portuguesa. Deve ser lida como cálix e cóccix (se acha que não, experimente o leitor dizer esta palavra como muitos dizem Felics…).

Em escassos seis meses, a vida de João Félix mudou radicalmente. Foi titular indiscutível na equipa principal do Benfica, mas apenas desde Janeiro sob a direcção de Bruno Lage, embora tivesse brilhado nos juniores, o que, há um ano, muito ajudou o clube a sagrar-se campeão nacional.

Dentro de semanas, Madrid substitui Lisboa e o Atlético espanhol segue-se ao SLB. Muito se tem dito sobre os prós e contras desta mudança tão rápida, quanto alucinante. Para um teenager na idade de todos os sonhos, não é fácil ter de fazer uma escolha desta magnitude, pois que ao lado de uma opção está sempre uma renúncia. Melhor? Pior? O tempo se encarregará de dar a resposta.

É óbvio que terá sido uma decisão pensada e ponderada. É natural que tenha tido a ajuda imprescindível da sua família e o acompanhamento profissional do seu agente. Percebo os riscos associados a qualquer das opções que tiveram de sopesar.

No fundo, a decisão é um caminho entre o certo hoje e o incerto amanhã. Entre o seguro agora e o arriscado depois. Entre o apanhar o comboio que passa e o esperar pelo próximo. Entre o fascínio e a maturidade. Entre a meta e as etapas. Entre o maior resguardo e a maior solidão. Entre o coração sem cifrões e o dinheiro sem pulsações.

2 - Como benfiquista, sinto alguma divisão dentro de mim. Fico desolado futebolisticamente falando. Tenho de me resignar diante de um futebol, em que primeiro está o ter e cada vez menos o ser, por via da regra impositiva do poder dos dinheiros sem pátria. Nos últimos anos, assim tem sido com muitos atletas que permitiram ao Benfica na era L.F. Vieira ter superado a barreira dos mil milhões de euros (brutos) de encaixe financeiro. Ponho-me a imaginar o sonho de voltar a ser campeão europeu se, em momentos diferentes, tivessem continuado no Benfica, jogadores que passaram pelo clube durante uma época ou metade dela: Ramires, Witsel, Ederson, Oblak, Renato Sanches, Gonçalo Guedes, Lindelof, Matic, etc. Não esquecendo Bernardo Silva ou João Cancelo, que praticamente não conheceram o carinho da Luz. Custa-me muito que o meu clube não possa aguentar um pouco mais pérolas tão preciosas, que não aparecem de um dia para o outro. E se o meu coração encarnado continua a sangrar pelo notável Bernardo - ele próprio um benfiquista de alma e coração -, ver partir João Félix com o escassíssimo aperitivo de quatro meses (na 1ª categoria) provoca um grande desconforto na inegociável alma benfiquista.

Por vezes, em momentos de puro lirismo, ainda me passa pela cabeça que é possível contrariar o império do dinheiro e a malfadada lógica de entreposto. Mas logo desperto do sonho acordado e percebo que o caminho é irreversível.

Respeito, racionalmente, a decisão da saída. É a vida, como sói dizer-se. Mas, na quietude cómoda da minha casa e diante do computador no qual agora escrevo estas palavras, tenho pena de não se terem conjugado caminhos para uma solução a contento de todos. João Félix poderia ter amadurecido, humana e futebolisticamente, mais uma ou duas épocas no Benfica. Creio mesmo que teria mais a aprender com Bruno Lage do que com Simeone. Bem sei que escolheu Madrid, ali mais perto de Lisboa, e não uma fria Alemanha, ou uma desinteressante França ou Itália (já quanto a Inglaterra, sou de opinião que seria a escolha ideal). Bem sei que vai para um forte clube que quer subir ao topo e do qual já se vem aproximando. Não tenho dúvidas de que será bem aconselhado e é um rapaz ajuizado. Todavia, o desafio, ainda com os seus 19 anos, tem riscos não despiciendos. Cito apenas um que não teria se estivesse mais uns tempinhos na Luz (ainda que com menos dinheiro já em cima de muito dinheiro): com 120 milhões investidos e 6 ou 7 milhões líquidos por ano (cito o que tenho lido), não vai ter estado de graça, isto é, não vai ter muita margem de erro ou de adaptação. Isto perante os adeptos impacientes que sempre os há, os media-abutre espanhóis implacáveis contra os portugueses e o balneário onde a natureza humana da inveja e da injustiça relativa sempre espreita em momentos menos afortunados.

Cento e vinte milhões de euros é, de facto, um montante assombroso. O seu a seu dono. Uma operação que muito se deve ao presidente do Benfica, que teve o rasgo e a visão de dobrar a cláusula de rescisão ainda há bem pouco tempo e que nunca cedeu a uma transferência por um valor inferior. Não se trata apenas de um valor (bruto, é certo…) impensável para um rapaz de 19 anos, como também releva o facto de o recebimento ser imediato, o que também faz muita diferença face ao recorrente escalonamento e diferimento dos recebimentos.

3 - O mundo do futebol rico entrou numa zona para-obscena que nada tem a ver com o das sociedades em que se insere. Para os maiores clubes  europeus, mais milhões ou menos milhões é quase igual ao litro. Ou são os consumidores que os pagam por via da repercussão nos preços dos bens e serviços por força dos direitos de imagem, da publicidade e patrocínios, ou são fundos soberanos de Estados distantes e ricos que têm meios, não raro em regime (consentido) de lavandaria e pronto-a-vestir. A isto a FIFA e a UEFA fecham os olhos e fingem fair play financeiro que só atiram aos países pobres e remediados com o seu selectivo dedo em riste.

Mas voltemos aos 120 milhões. Vejamos alguns exemplos do que significa este valor, em termos relativos, com outros indicadores do Portugal de 2019. Trata-se de tanto como 75% do total de taxas moderadoras que, no SNS, os portugueses pagam por ano. Equivale a 34% do total orçamentado com o Rendimento Social de Inserção, a 17% do Abono de Família, a 57% do Complemento Solidário para Idosos, prestação que é paga aos pensionistas de mais baixas pensões e sem outros recursos, ou, ainda, a 21% da totalidade do Subsídio de Desemprego. O montante da transacção equivale, por outro lado, a 37% do Orçamento do Ministério da Cultura e a 14% da totalidade da verba pública dedicada à investigação científica de carácter geral. E corresponde a 11% do todo o Sistema de Justiça (excluindo prisões) e - imagine-se! - a 8,2 vezes o orçamento de toda a Presidência da República. Comparando com impostos, equivale, por exemplo, a 31% do Imposto de Circulação de Viaturas. O valor em causa é o mesmo que o salário mínimo português anual (14 meses) pago a 14.286 trabalhadores. Como se constata, oscilamos entre o esplendor e o fausto deste Portugal da fantasia e a exiguidade do Portugal do comum cidadão.

Fiz ainda outro exercício. Comparei aquele valor com a capitalização bolsista das SAD dos três grandes que, conjuntamente, era, à cotação de ontem, 24 de Junho de 2019, de 129.325 milhões de euros (representando a SAD encarnada 53,4% do total). Montante pouco acima da cláusula de rescisão paga pelo clube de Madrid. Em jeito de brincadeira especulativa, seria caso para perguntar por que não fez o Atlético, com mais uns pozinhos, uma Oferta Pública de Aquisição (OPA). Ficaria não só com o João Félix, mas com os três plantéis do SLB, FCP e SCP…