Feitiço contra o feiticeiro!...
Ofeitiço virou-se contra o feiticeiro é um ditado popular que traduz aquelas ocasiões em que alguém arma uma maldade para outro, mas antes cai naquilo que ele próprio armou.
Vem isto a propósito da Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal, que hoje, ao abrigo da alínea g) do artigo quarenta e três dos Estatutos do clube, reúne para julgar do recurso interposto perante ela pelo ex-presidente Bruno de Carvalho da sanção disciplinar de expulsão que lhe foi aplicada pelo Conselho Fiscal e Disciplinar. Ou confirma ou revoga-a, o que constitui desde logo um dos absurdos deste recurso. Na verdade, se a assembleia confirmar a decisão do órgão recorrido, Bruno Carvalho deixará de ser sócio do Sporting Clube de Portugal; mas se a assembleia revogar a decisão então Bruno Carvalho continuará a ser sócio do Sporting, sem qualquer sanção pelos factos de que foi acusado e punido!!! Será isto justiça?
É exactamente por isso que os meus votos não serão utilizados nesta assembleia, como já referi publicamente. Há já alguns anos que sinto absoluta necessidade de uma reforma da assembleia geral, o que aliás já defendi em inúmeras ocasiões, inclusive no último Congresso Leonino que se realizou.
É na Assembleia Geral, composta pelos sócios efectivos no pleno gozo dos seus direitos, e admitidos como sócios do clube há pelo menos doze meses ininterruptos e que tenham, de acordo com a lei, atingido a maioridade, que reside o poder supremo do Clube, diz o artigo 42.º dos Estatutos. Também a Assembleia da República é um órgão de soberania e a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, mas nela não têm assento todos os portugueses, mas apenas os seus representantes.
Os cidadãos portugueses elegem os seus representantes - os deputados - para os representarem na Assembleia da República no exercício das competências próprias desta, sendo impensável que todos os cidadãos participassem diretamente nas deliberações. É a chamada democracia representativa, porque a democracia directa não raramente conduz à ditadura, não sem antes passar pelo populismo, tão em voga em Portugal e não só.
Vejamos desde já, nesta breve comparação, a primeira das competências da Assembleia da República e da Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal. A alínea a) do artigo 161.º da Constituição da República Portuguesa diz que compete à Assembleia da República aprovar as alterações à Constituição; nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 43.º dos Estatutos do SCP, compete à Assembleia Geral alterar os estatutos do clube. Isto é, compete a duas centenas de deputados alterar a Constituição Portuguesa; compete, teoricamente, a várias dezenas de milhares de sócios alterar os estatutos do Sporting Clube de Portugal.
Poderão dizer que é teórico e não acontece na prática. Mas eu responderei que, na prática, podem comparecer quatro, cinco ou seis mil pessoas, o que é mais que suficiente para tornar impossível uma discussão séria sobre um assunto de vital importância para uma instituição, como é o caso da sua lei fundamental. Isto para não falar dos motivos da comparência dos associados, determinados pelo humor do momento, dependente dos resultados desportivos. Foi aliás Bruno de Carvalho que deu o melhor exemplo de populismo puro e duro, ao transformar uma assembleia de alteração estatutária numa chantagem para a sua continuidade.
Esta ideia de assembleia geral universal está completamente ultrapassada, e só pode ser defendida e sustentada por quem não está interessado em discutir assuntos sérios e importantes de uma forma esclarecedora. E digo isto para governantes e governados, porque falta a coragem a todos para pôr o assunto na ordem do dia. Fará algum sentido, nos tempos actuais, que as decisões de uma sociedade anónima desportiva possam estar dependentes de uma assembleia geral do accionista de referência, seja ele maioritário ou minoritário? Alguém pode pensar que as vitórias no futebol dependem das deliberações das assembleias gerais universais? Ou será que não é exactamente o populismo que tem conduzido o Sporting Clube de Portugal a tão fracos resultados numa modalidade que não pode ser gerida de forma populista?
Eu era para me debruçar sobre este tema noutra ocasião, já que hoje se realiza uma que tem por objecto um julgamento popular, com fundamento estatutário. Porém, na quarta-feira passada, tive ocasião de assistir, significativamente no Museu do Aljube, à apresentação de um livro da autoria do Doutor Paulo Pinto de Albuquerque, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e que, em Janeiro de 2011, foi eleito Juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos - ‘Em defesa dos direitos fundamentais’. Intervieram na apresentação o Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Guilherme Figueiredo, o Conselheiro Henrique Gaspar, ex-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Pacheco Pereira, conhecido comentador politico.
Do muito que ouvi, resultou a continuação da minha reflexão sobre o populismo e as suas consequências, designadamente, aquelas que bastas vezes conduzem a uma violação dos direitos fundamentais! E da violação dos direitos fundamentais à ditadura vai um pequeno passo.
No momento actual, o discurso sobre a assembleia de hoje é essencialmente populista, como populista foi e é aquele que para ela interpôs o recurso. Como populista é o discurso dos que vão votar a confirmação ou a revogação da decisão do Conselho Fiscal e Disciplinar do Sporting Clube de Portugal. Que uma destituição dos órgãos sociais seja deliberado numa assembleia universal não me causa indignação, nem problemas de consciência, porque também é uma assembleia geral universal que os elege, num ambiente também carregado de paixão, emoção e subjectividade. Mas o julgamento de um recurso de uma sanção de expulsão é algo que só se enquadra num regime de governo populista, para quem o direito é apenas um acessório de vestuário, que se usa de acordo com a conveniência do momento.
E a este discurso populista que vai reinando nas redes sociais e afins, junta-se a comunicação social que vai dando guarida às vozes comandadas pelas centrais de comunicação que debitam esse mesmo discurso populista, que nada constrói e tudo procura destruir, incluindo a sanidade de quem os tem de escutar, quanto mais não seja para os combater. E não satisfeitos com o populismo do discurso, completam a sua manipulação da opinião com a burla dos inquéritos para que a fantochada seja completa. Não compreendo como é que jornalistas sérios - e ainda há alguns - que alinham neste tipo de vigarice, sabendo de antemão que hoje as centrais de propaganda dos clubes têm maquinas que vomitam votos para influenciar a cabeça e a consciência das pessoas e encher as algibeiras de valor acrescentado. A comunicação social não tem hoje autoridade moral para criticar o populismo, porque é hoje veículo de uma modalidade miserável desse mesmo populismo.
Sei que não sou hoje, como não sou muitas vezes, politicamente correcto. Mas penso do populismo, e sobretudo do seu discurso, o mesmo que António Lobo Xavier: «discurso populista é quase sempre moralista e excludente, no sentido de que não é pluralista: os seus seguidores não são apenas melhores, são geralmente os únicos moralmente dignos. E, aceitando embora - muitas vezes só na aparência - o jogo democrático, desprezam com frequência as instituições».
E é isto que eu sinto relativamente ao que está acontecendo às assembleias gerais do Sporting Clube de Portugal, e a desta tarde enquadra-se nesse desígnio populista que o ditado popular resumiu na viragem do feitiço contra o feiticeiro. Hoje, qualquer que seja o resultado, o populismo vira-se contra os populistas.
Nota: Assisti ontem no Jamor ao reviver da final da Taça de Portugal de 22 de Junho de 1969, entre a Académica e o Benfica, num momento de luta estudantil que ficou na história e abriu uma porta no caminho da liberdade. Momento muito grande que terá de ficar para a semana.