Fazer das fraquezas forças!

OPINIÃO30.03.202004:00

OS tempos estranhos que estamos a viver entranham-nos na alma sensações que jamais esqueceremos. Na última quinta-feira saí de casa, ao Areeiro, por volta das nove e meia da noite, meti-me no carro e fui até ao Bairro Alto para fazer, com o André Pipa, a Quinta da Bola, na BOLA TV. Pelo caminho, percorri uma cidade fantasma, e tive como compagnons de route (em sentido literal...) apenas os moto-boys da Glovo e da Ubereats. Doze minutos depois de ter posto o carro a trabalhar, estava a desligá-lo, na rua Nova da Trindade, um recorde supersónico que me mostrou como, afinal, (porque tempo é distância), morava perto do palacete que é sede de A BOLA. E foi então que fiz, a pé, o percurso entre o Largo da Misericórdia e o número 23 da Travessa da Queimada, na mais completa solidão, sem vislumbre de vivalma, apenas acompanhado pelo silêncio no Alfaia, no Aldeia, no Irish Pub, no Mojito, no talho e até na mercearia dos paquistaneses, que tem por lema estar aberta a horas e a desoras.  

ESTES são, essencialmente, tempos de angústia, angústia pelas notícias que nos falam de amigos infetados, angústia pela impossibilidade de estar com os entes queridos e, a páginas tantas, vermo-nos a cantar os parabéns a você através de chamadas-vídeo no WhatsApp, angústia por não fazermos ideia de que país vamos encontrar quando nos for devolvida uma normalidade que nada terá a ver com a normalidade que conhecíamos, angústia pela informação que nos chega de forma torrencial e nos transporta para pesadelos sombrios, como aconteceu no sábado quando o diretor do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido disse que se o número de mortos, no espaço que tutela, ficasse abaixo dos vinte mil não seria nada mau, angústia, ainda, pela incapacidade real de previsão do fim da pandemia. Esta angústia é a nossa fraqueza. Mas estes são tempos de fazer das fraquezas forças, e encarar o futuro com coragem e determinação. Afinal, é a terceiro grande abalo por que passamos no século XXI, depois do 11 de setembro de 2001 e da crise financeira de 2008. E encarar o futuro com coragem é, como aqui escrevi há uma semana, pegar nos problemas e transformá-los em oportunidades, mantendo a mente arejada e o coração aberto aos desafios que se adivinham.  

Énestes tempos de dificuldade que o caráter de cada um mais se revela. Como foi o caso do ministro das Finanças holandês a quem o chefe do Governo de Portugal acertou o passo; ou do lunático ditador da Bielorrússia, que mantém o país a funcionar como se nada fosse, escrevendo-se hoje o preâmbulo da crónica de uma tragédia anunciada naquele país; ou ainda do inenarrável Jair Bolsonaro (e que só se explica com o facto do PT ter levado os brasileiros a um estado de desespero incomensurável, tão insuportável que estes colocaram uma criatura absolutamente destituída do básico no Palácio do Planalto), que faz com que Donald Trump pareça um intelectual de fino recorte.

COM o sol a brilhar e o apelo da praia a falar mais alto, a fila, rumo a sul, na ponte 25 de abril, no último sábado, serviu de ilustração às razões aduzidas por Marcelo Rebelo de Sousa para solicitar a instauração do estado de emergência em Portugal. Depois do choque inicial, a tendência - que tem sido vista um pouco por todo o lado, da praia de Bondi, na Austrália, aos parques de Londres e, até, aos espaços à beira Hudson em Nova Iorque - é de facilitar, numa interpretação cada vez mais relaxada da nova normalidade. E é aí que o Estado tem de ser forte e cumprir a sua missão, impedindo uns quantos de colocar em causa o destino comum. E nunca como hoje precisámos de um Estado forte e coeso, a falar a uma só voz (e que bom exemplo tem dado a oposição, a começar por Rui Rio...).

Ofutebol, apanhado no meio de uma tempestade perfeita que não se sabe quando vai acabar, procura controlar danos, evitando o naufrágio. E se não choca ouvir falar de cortes salariais nos principais emblemas, o mesmo não sucede quando se fala de jogadores que funcionam em regime de economia de subsistência, realidade que conhecemos bem em Portugal. Estamos a falar de mundos amplamente diferentes, que não podem ser tratadas da mesma forma. Há muitos anos que defendo que no nosso país há profissionais de futebol a mais, para uma realidade de economia débil e parcos (e mal distribuídos) recursos. Quando sairmos desta crise, talvez ganhe pertinência debatermos o profissionalismo de miséria que temos nos mais diversos escalões, que se traduz em jogadores que passam dez ou quinze anos em divisões inferiores a ganhar salários que só dão, e mal, para o dia a dia (quando lhes pagam...) e que quando decidem arrumar as botas, depois de franqueada a fronteira dos trinta anos, não sabem fazer nada mais, para além daquilo que já não podem fazer. E, se não for pedir demais, também pode (re)entrar na ordem do dia a magna questão da centralização dos direitos televisivos e a não menos importante matéria respeitante a uma nova formatação do quadro competitivo, preferencialmente com menos clubes por divisão.  

FALTA falar do tema que tem trazido justamente preocupados os dirigentes do futebol: como terminar a época de 2019/2020?
A Federação Portuguesa de Futebol (FPF), relativamente aos escalões jovens, tomou a decisão mais adequada e que merece aplauso pela coragem e pela lucidez, e apontou um rumo seguido também por várias modalidades, no estrangeiro: a época acabou, não se joga mais e não há campeão.  
Já o futebol sénior está a estudar vários cenários, sem poder ser demasiado assertivo em relação a qualquer deles, por se desconhecer quando ocorrerá o fim da emergência sanitária, que passam por um princípio basilar comum: é imperioso que o desfecho das competições tenha um nexo desportivo. Esta recusa de campeões de secretaria (que a FPF liminarmente afastou) é saudável para o futebol e implementá-la vai obrigar a exercícios imaginativos, que colocarão à prova a têmpera dos dirigentes. Nunca, como hoje, foi tanto preciso trabalhar em conjunto, e qualquer decisão deverá, primeiro, passar por entendimentos estruturantes entre clubes e jogadores, vistos como empregadores e empregados. Para além dos cortes salariais em curso, será preciso, dentro em breve, estudar prolongamentos de contratos que acompanhem o novo final de temporada, quer seja mais dois ou três meses, ou chegue à necessidade de adaptar as épocas desportivas na Europa ao ano civil.


Finalmente, algumas palavras sobre os principais financiadores do futebol, as televisões. Em muitos países já há operadores que se recusam a pagar as tranches negociadas, argumentando, e bem, com a falta de matéria prima, ou seja, de jogos. Porém, quando as competições forem retomadas, será legítimo que mantenham a mesma filosofia e não se importem de pagar mais, num contexto em que os jogos, para despachar calendários, ocorrerão a uma cadência vertiginosa...  

TIVE oportunidade, finalmente, de ver o Portugal-Roménia (1-0), da fase final do Campeonato da Europa de 1984, que não deu em direto, na altura, para Portugal. Nesse dia 20 de junho, no estádio La Beaujoire, de Nantes, que tinha acabado de ser inaugurado, foi graças a um golo do incontornável Tamagnini Nené, um dos maiores jogadores do futebol português, cujo estilo técnico e inteligente cairia como uma luva no jogo como é hoje jogado, que Portugal ganhou direito a estar na meia-final de Marselha, com a França. Entre o prazer de rever a genialidade de Fernando Chalana (que de tão massacrado nessa tarde, só jogou 15 minutos, sendo substituído pelo portentoso Diamantino Miranda), a qualidade de Fernando Gomes, a disponibilidade de Carlos Manuel, o rendilhado de Frasco, a visão de António Sousa, a entrega de Álvaro, a solidez de Eurico e Lima Pereira, e a pendularidade de João Pinto, acabou por sobressair a saudade de Rui Jordão, felino e imprevisível, e de Manuel Bento (um beijo à Gertrudes), que entre 1982 e 1984 atingiu o auge da carreira, ágil, corajoso, rápido a sair dos postes como hoje não há nenhum guarda-redes no futebol mundial. De facto, recordar é viver...