Euro-2020 no inverno

OPINIÃO21.01.202113:13

Do juízo que devemos ter cá dentro sob pena de fecho temporário à reflexão sobre se vale a pena ter um Europeu realizado à porta fechada

H Á já muito tempo que o #vaificartudobem deu lugar ao #salve-secomopuder fruto do instinto de sobrevivência que o ser humano carrega nos genes há milhões de anos. Os episódios a que assistimos no futebol nos últimos dias, envolvendo as equipas mais mediáticas, só provam que está tudo como dantes. Com uma agravante, porém: se no velho normal a guerra de palavras, mais ou menos insultuosas, servia para alimentar o circo, agora o caso é diferente porque envolve questões de saúde pública. Vamos imaginar, por exemplo, que tínhamos um primeiro-ministro que não era fã de futebol e que no dia mais negro de sempre da pandemia em Portugal, com recorde de mortos (pela primeira vez a fasquia a subir acima das duas centenas!), percebia que não só os casos de Covid-19 estavam a subir vertiginosamente nos grandes clubes mas, fundamentalmente, que esses mesmos clubes estavam a roubar tempo e recursos aos especialistas de saúde  tendo por base, apenas e só, o sentimento de desconfiança (no futebol em Portugal toda a gente desconfia de toda a gente). Imagino o que terá pensado a cúpula da Direção-Geral da Saúde no momento em que foi convidada a pronunciar-se sobre comunicados de FC Porto e Sporting, tweets e monólogos de diretores de comunicação nas TV oficiais: tivesse Graça Freitas outro perfil e, com o aval do chefe do Governo, já teria dado ordem para fechar o futebol durante duas semanas para aplanar a curva de contágios e achatar as cabeças dos incendiários. Juízo precisa-se.

O UTRA das lições que a pandemia nos trouxe é a incerteza absoluta sobre o dia de amanhã e que as palavras dos decisores têm um valor residual, próprias de quem vive numa bolha (mas não sanitária). Ainda todos nos recordamos, por exemplo, da teimosia dos organizadores dos Jogos Olímpicos em Tóquio, que só à ultima hora e muito a custo admitiram adiar o evento para 2021. Espero que na UEFA haja a mesma sensibilidade que presidiu ao adiamento do Euro-2020, seja para decretar novo adiamento ou admitir, pelo menos, essa hipótese. Uma vez que o plano de vacinação na Europa vai correr quase à mesma velocidade em todos os países, é muito provável que no início da prova (11 de junho) a maioria da população europeia ainda não esteja vacinada contra o novo coronavírus (ou pelo menos as faixas populacionais que mais se deslocam para apoiar as suas seleções), o que obrigará a um Europeu à porta fechada. E coloca-se a questão: faz sentido um Campeonato da Europa, um Campeonato do Mundo ou mesmo uns Jogos Olímpicos sem público? Nas competições nacionais ainda se percebe pelo seu caráter constante (jogos de semana ou de três em três dias) e pelo sentimento de tribo/comunidade que a televisão vai mantendo, mas um Euro, Mundial ou Jogos são as grandes festas entre povos e nações, de uma dimensão universal, que perde todo o sentido na era da videochamada. No caso concreto do Europeu de futebol, cujo título Portugal defende, subscrevo o que muitas vozes já vão defendendo, nomeadamente alemãs: empurrar para o final do ano, quando a imunidade global já estiver bastante adiantada (esperemos), permitindo a mobilidade das populações, estádios cheios (ou quase) e, até, manter o formato dos 12 países pensado por Michel Platini para comemorar (em 2020...) os 60 anos dos Campeonatos da Europa. Bem sei que isso implicaria alterações nos calendários, mas se pela primeira vez na história vamos ter um Campeonato do Mundo no inverno (21 de novembro a 18 de dezembro de 2022) como única forma de escapar ao calor de verão do Catar, por que motivo os petrodólares servem a exceção e não um bem maior chamado saúde?