Estado e Estádio da Luz
1 Dizia Vergílio Ferreira que «o tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou». Foi desta notável síntese da noção dentro de nós da corrida do tempo que me lembrei na passada quinta-feira no jantar comemorativo do 16º aniversário do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, mais popularmente conhecido e reconhecido como o Estádio da Luz, ou, em versão laica, como a Catedral. De facto, o tempo voa e o jogo inaugural em 2003 contra o Nacional de Montevideu, a que pude assistir, parece que foi ontem. E, no entanto, tantas sensações e exaltações por lá já vivi e testemunhei. Por vezes, pergunto-me se tenho mais nostalgia do anterior e velhinho Estádio da Luz e do seu temido e empolgante terceiro anel ou se, tendo de escolher, daria o meu voto ao actual palco. Vim em 1965 para Lisboa e para a universidade. Tinha 17 anos e a então Luz foi para mim um êxtase, eu que até aí apenas conhecia o campo da Académica, no Calhabé, e o Mário Duarte, em Aveiro. Por lá, vi o meu Benfica ser campeão muitas vezes. Por lá, vi jogos europeus inesquecíveis. Lá, suportei tardes de sol impenitente, quando os jogos eram quase todos às 15 ou 16 horas, e chuvadas que me molharam até ao tutano dos ossos. Lá, tive o privilégio insubstituível de ver jogar atletas notáveis que, para não ser injusto com nenhum, sintetizo aqui no esplendor do rei Eusébio. Lá, vivi noites europeias que moldaram o meu benfiquismo irredutível e inalienável. Lá, vi jogos decisivos contra os rivais, onde o desassossego da incerteza do desfecho era salutarmente partilhado com a rivalidade entre amigos que acabava sadiamente ao mesmo tempo do apito do árbitro, sem o azedume e o mal-estar que hoje é dominante. Ontem, como hoje, ir ao Estádio da Luz é um bom paradoxo: uma ansiedade gostosa, que me liberta. Um privilégio e um aconchego. Uma cumplicidade e uma pertença. Um espaço sem limites nos limites de um tempo. A imanência de, mais impressivamente, o Benfica estar dentro de mim e eu dentro do Benfica. Sempre como se fosse a primeira vez, abraço a Luz e sou por ela abraçado.
Dezasseis anos decorridos sobre a inauguração do novo e belo estádio, quais foram os momentos mais marcantes para mim? Elejo três. O jogo decisivo contra o Sporting, em 14 de Maio de 2005, quando Luisão marcou o golo da vitória e nos levou ao título que acabou com o mais longo jejum da história do clube. O segundo, a vitória sobre o Porto (2-0) na caminhada para o título de 2013/2014, três dias depois da morte de Eusébio, numa tarde invernosa, num ambiente de luto, de saudade e de gratidão infinita que ali convergiram para lhe oferecer o mais lindo ramo florido do seu féretro. E, evidentemente, os sete títulos que lá festejei entre amigos, conhecidos, consócios de todas as idades e de todas as proveniências próprias do universalismo benfiquista. E dentre estes, os mais saborosos: o do tetra e o da reconquista.
Aqui expresso, como benfiquista, o grato reconhecimento devido ao principal obreiro do novo estádio: Mário Dias. Sei que houve muitas pessoas que para ele contribuíram. Mas realçar o trabalho, a competência, a perseverança de Mário Dias é da mais pura justiça. Um homem simples, de carácter, que serviu o Benfica até aos limites do impensável, nunca se servindo dele, justo, conhecedor, dedicado, leal, o que é tão mais de salientar quanto, nos dias de hoje, na sociedade portuguesa, se vêem medrar personagens impreparadas, oportunistas que confundem as suas actividades com benefício próprio, sem provas de vida, sem sentido deontológico do dever e da responsabilidade. A decisão do presidente do SLB de homenagear Mário Dias foi uma justíssima e eloquente decisão. E hoje bem podemos dizer que o Estádio da Luz tem sido, entre muitos outros avanços patrimoniais e de boa gestão, um elemento decisivo para a notável inversão do ciclo menos vitorioso e cinzento em que o clube se encontrava nos anos que o precederam.
2Foi tornado público o Relatório e Contas da Benfica SAD do exercício concluído em 30-06-19. Um exaustivo e claro documento, que nos fornece todos os elementos para uma análise da situação da Sociedade. Espero que a fanfarronice com que certa gente discorre sobre a situação económica e financeira do clube dê lugar a juízos baseados no documento oficial entregue na CMVM.
Neste limitado espaço, cinjo-me a um breve roteiro de síntese do que, na minha leitura, considero mais relevante:
- O capital próprio (116,2 milhões [M] de euros) ultrapassou o montante do capital social, situação inédita no panorama nacional. Aliás, o valor acumulado do aumento do capital próprio foi nos últimos 6 exercícios superior a 140 M;
- Nos últimos 6 anos, a convergência do êxito desportivo e financeiro: 5 vezes campeão e um total de resultados acumulados de 136,2 M;
- Os gastos com pessoal e honorários face às receitas (descontadas as relativas às transacções de direitos de atletas) continuam claramente abaixo do limite imposto pelas regras de fair play financeiro da UEFA. De facto, sendo este de 70%, nunca nesta década na SAD benfiquista se ultrapassaram os 60%;
- Já o resultado com transacções de direitos de atletas atingiu, desde 2010/2011, o valor acumulado de 544,9 M (média anual de 60,5 M). De realçar que estes valores não são o valor bruto das alienações, mas o produto líquido, ou seja depois de serem deduzidos o valor líquido contabilístico dos direitos aquando da alienação (isto é, o valor de aquisição deduzido das amortizações já realizadas), bem como as comissões (8,9% das vendas brutas) e outros encargos. Estes valores ainda não consideram a transferência de João Félix, que teve lugar já no exercício que está a decorrer;
- O activo atingiu o valor icónico dos 500 M e o passivo tem vindo a descer sendo agora de 384,6 M (menos 70,9 M do que há 3 anos, ou seja uma melhoria de 15,5%);
- Quanto ao passivo, tem havido uma significativa alteração da sua estrutura, designadamente com redução da dívida de curto prazo e da dívida bancária. Esta, aliás, é quase residual representando apenas 9% da dívida financeira, quando ainda há 3 anos era de 70%. A dívida bancária e obrigacionista líquida passou para 124,6 M, ou seja apenas 40% do valor de há 4 anos;
- Verifica-se, pela primeira vez, uma dívida líquida inferior aos rendimentos operacionais, excluindo transacções de direitos de atletas (75,2%). Se considerarmos a totalidade dos proveitos, representa 47,3%, quando há apenas 2 anos, ultrapassava os 100% e há 4 anos era de 167%;
- Os rendimentos operacionais chegaram aos 165 M, sem considerar a alienação de jogadores. Como se lê no relatório, esta evolução muito positiva é principalmente «justificada pela entrada em vigor do novo critério de distribuição de prémios nas competições europeias da UEFA, para o ciclo 2018/2021». Eis, pois, um ponto crucial na sustentação futura do nível alcançado. Por isso, como já aqui referi em outra crónica, estamos perante uma das equações fundamentais da gestão da SAD: ter um plantel não só à altura de vencer as provas nacionais, como também por forma a apresentar resultados europeus retributivos. Por outras palavras, estamos perante uma interdependência entre cá e lá. É que ganhar por cá é decisivo para manter a receita da Champions, e fazer boa carreira nesta é meio-caminho andado para ganhar nas provas nacionais.
3 Segundo os resultados de uma sondagem efectuada no mês passado, o Benfica continua a ser o clube com mais adeptos e simpatizantes. Com larga e absoluta maioria de 46%, quase tanto como os seus directos rivais têm em conjunto (Porto com 24,7% e Sporting com 23,8%). Aquela percentagem equivale a 4,7 milhões de residentes em Portugal, a que, evidentemente, se tem de adicionar os benfiquistas na diáspora. Daí que os 6 milhões de benfiquistas sejam uma realidade, ainda que tal situação seja mal digerida por alguns negacionistas militantes.