‘Es lo que hay’

OPINIÃO10.11.202205:35

Gerard Piqué foi sempre muito mais que um jogador. Uma personalidade que deixa saudades por ser tão rara

DE tempos a tempos o futebol dá-nos jogadores assim: ótimos no campo e excelentes na sua dimensão pública, contrariando o protótipo do tipo que treina, joga, despeja discursos vazios na substância e vive na bolha dos momentos instagramáveis. Piqué foi um desses raros exemplos de um excelente futebolista que também mostrou ser uma pessoa normal, embora a normalidade de um homem com uma grande astúcia para negócios em áreas da tecnologia, audiovisual, eventos e gestão, nas quais os desportistas europeus tradicionalmente não entravam. O central catalão é a prova de que um jogador de primeiríssima água não perde o foco (para usar a tão gasta expressão da moda) apesar da vida preenchida. O Piqué central, o Piqué jogador do melhor Barcelona de todos os tempos (com Guardiola, principalmente, mas também com Tito Vilanova e Luis Enrique), o Piqué capitão, era o mesmo que à noite, num clássico, fazia um tackle a Cristiano Ronaldo (ou era fintado pelo português...) e na manhã seguinte se pronunciava sobre política. Jogador de muito mundo, foi um espírito livre e graças a essa liberdade ganhou inimigos entre os adversários, fosse por defender o barcelonismo como um adepto (a manita após goleada ao Real Madrid de José Mourinho, imitando gesto de Bruins Slot, à data adjunto de Johan Cruyff, fica para a história) ou para reivindicar a liberdade de voto para os catalães no referendo à autonomia, o que lhe causou muitos problemas na seleção espanhola.
Com o adeus aos relvados aos 35 anos, despede-se alguém que, usando o lema do seu clube de sempre (Mes que un Club), foi mais que um jogador; alguém que percebeu para onde o mundo caminhava e fez uso da sua imagem para entrar em novos mercados, desde o Twitch à revolução da Taça Davis e a criação de um novo formato para a Supertaça de Espanha, levantando suspeitas de promiscuidade com a federação; que usava (usa) as novas plataformas de media para se pronunciar sobre futebol, mercados, cultura, a vida; que comprou o FC Andorra ; um jogador a quem seria impossível impor regulamentos a proibir falar disto ou daquilo; um capitão que acrescentava algo sempre que falava nos meios tradicionais, mesmo nos momentos mais negros - foi ele a dar a cara na humilhante goleada de 2-8 frente ao Bayern, no Estádio da Luz, na final a 8 da Liga dos Campeões na era Covid, em 2020 - e a quem ficará para sempre colada a frase Es lo que hay perante nova derrota dos culés diante dos bávaros, por 0-3, num misto de resignação e protesto, ele que tinha sido protagonista do Barça de sonho e via agora o clube cair nas trevas; por fim, um jogador que apesar de principescamente pago no Barcelona, estaria já a ganhar mais como empresário.
Na hora do balanço, e comparando-o por exemplo com Sergio Ramos (ambos quase da mesma idade, rivais e colegas na seleção), é dele de quem terei mais saudades. Porque não se despede mais um ótimo futebolista, mas uma grande personalidade que abalava consciências. 
 

PARECE que agora todos despertaram para os perigos e condicionalismos de um Campeonato do Mundo num país sem dimensão demográfica e futebolística como o Catar, que não respeita direitos fundamentais de cidadania e que obrigou a jogar-se a principal prova no inverno no hemisfério norte porque seria insuportável fazê-lo em junho/julho devido às temperaturas de 50 graus.
Tudo isto faz lembrar o recente filme Don’t look up, uma sátira a todos os tipos de negacionismo: só quando o meteorito está a chegar à Terra é que as pessoas se deparam com a verdade. Porém, quando se pensava que nada mais podia surpreender, eis que a narrativa fechou com chave de ouro com o mea culpa de Joseph Blatter, o homem que fica ligado a uma série de escândalos na FIFA. «Foi um erro atribuir, há 12 anos, o Mundial ao Catar. É um país pequeno demais, o futebol e o Campeonato do Mundo são grande demais para isso», disse o suíço. Para a confissão ter um peso ainda maior, só faltou fazê-la na véspera do pontapé de saída. Uma falha de um mestre da pantomina.     
É o futebol que temos. Es lo que hay.